Imprensa
12/05/2011

Saint-Ex está de volta

Diário Catarinense por Sérgio da Costa Ramos

12 de maio de 2011 | N° 9167

Saint-Ex está de volta

O motor do seu Breguet-16 matraqueava acima das goiabeiras, seguindo em voo visual até o Campeche. Saint-Exupéry retorna hoje à Ilha, reencarnado no documentário de Branca Regina Rosa e Mônica Cristina Corrêa, ali nas imediações do Morro da Virgínia, a elevação que ele contornava com respeito ao relevo e aos elementos, toda vez que, vindo do norte, da Ponta do Rapa, aproava o leste, rumo ao campo da Latécoère onde seu liquidificador aéreo aterrissava placidamente, em meio à paz e à beleza da Ilha, entre 1929 e 1930.

O aviador e o artista se uniam no mesmo escritor, caso único de autor que viveu todas as aventuras de seus personagens, a singular simbiose de piloto de guerra com asas de poeta. Correio Sul e Voo Noturno revelaram um escritor de recursos, lírico, fascinado pela aventura. Um homem que acreditava nas virtudes heroicas e no altruísmo humano, e que soube imprimir à sua literatura uma notável grandeza moral. Antoine de Saint-Exupéry procurava encantos na humanidade sempre que o homem o desencantava, na República de Vichy, França ocupada, ou até na sede de poder de De Gaulle. Em 1943, um ano antes de sua morte – ao desaparecer no Mediterrâneo em sua última missão militar –, publicou O Pequeno Príncipe, que é uma fábula infantil para adultos, traduzida no mundo inteiro. Ali surgiu o poeta universal, escondido em sua prosa onírica.

A posteridade crítica não lhe fez justiça. É um autor que harmoniza ideias de grande valor moral com o invólucro formal de um poderoso lirismo, confundido com literatura piegas ou edulcorada. Leitura de miss. Para vencer esse mau juízo, só a simplicidade dos matutos do Sul da Ilha, que conviveram como o “seu” Zeperri.

Imagine-se a prosa entre eles, num patuá que se aproximasse do meio-termo entre o francês e o manezês. Ao desejar aprender os movimentos do lançador de tarrafas, o aviador entenderia por que, em certos momentos, os gestos valem por mil palavras:

– O sinhô tem qui garrá aqui, e lançá pra frente, os chumbinho vão fazê a rede corrê, di carreirinha, digerinho, digerinho…

– Je comprend…

– Qué comprá? Tô só ensinano, num tô vendeno…

O aviador terá desejado experimentar o palheiro que o pescador trazia atravessado na orelha, e oferecido, em troca, um maço de cigarros Gitanes, apreciado pelo ilhéu do Campeche, não sem uma censura:

– É fraco….

A testemunha dessa conversinha chã há de ter sido uma preguiçosa manhã de outono, o Campeche assistindo à beira-mar a perseguição dos parcéis de tainha, os cardumes quase emergindo à linha d’água, em meio às canoas bordadas, açorianamente coloridas.

Daí, disseram que o francês batizara o recanto, dando ao campo de aviação uma denominação compatível com o cenário:

– C’est un beau camp de pêche…

Puro folclore. Lenda à parte, é certo que o aviador terá aterrissado nos baixios do Sul da Ilha uma meia dúzia de vezes, a caminho de Buenos Aires e da Patagônia, ou de lá voltando. Vinha das areias de Agadir, Dacar e Casablanca, até encontrar as nevascas de Punta Arenas e Comodoro Rivadávia.

Há de ter ajudado os pescadores a puxar uma rede farta. Há de ter-se irmanado aos simples, aos despojados, aos ricos apenas da cultura autóctone. Há de ter oferecido um “ceroula” de aviador a algum matuto do Campeche, mostrando, em noite fria, como se protegia das madrugadas geladas sobre a cordilheira.

Alguém lhe terá perguntado como aprendeu a guiar-se pelos campos, rios, trigais, dunas e árvores. O aviador deixou a resposta por escrito, em Vol de Nuit:

– Só, no meio do vasto “tribunal” que um céu tempestuoso forma, o piloto disputa seu aparelho com três divindades elementares – a montanha, a tempestade e o mar…