O céu do paraíso

O céu do paraíso

Cartão-postal do Brasil, a dita “cidade maravilhosa”, o Rio de Janeiro, foi o berço da aviação nacional já no início do século XX. À época, tratava-se também da capital do país, portanto, um ponto de concentração econômica, social e cultural. Considerando-se que o Brasil ainda era um país de pouca urbanização e com imenso território intocado, o Rio de Janeiro se tornara, de fato, uma referência de civilização, sobretudo para os estrangeiros. E para os franceses era ainda mais do que isso: a cidade esteve presente em seu imaginário desde os tempos remotos da colonização; prevaleceu-lhes a imagem de um paraíso.

Entre quimera e frustração, o Rio de Janeiro desponta indubitavelmente como um destino francês desde sempre. Aliás, de forma não comprovável, mas bem provável, pode-se dizer que os franceses estiveram na costa brasileira até antes de Pedro Álvares Cabral. Conta-se de um Jean Cousin que abordara o país em 1498. Afora isso, uma tentativa de colonização, ainda que malograda, em 1550, parece ter marcado definitivamente a França com as cores e esplendores tropicais. Trata-se da expedição do almirante Nicolas Durand de Villegaignon, que veio com o propósito de fundar na floresta a “França Antártica”. A missão fracassou devido, entre vários fatores, às querelas religiosas entre católicos e protestantes, mas muitos integrantes da missão acabaram por se misturar definitivamente com os índios, passando a viver nas tribos. Outra grande parte foi expulsa pelos portugueses já em 1555; os que permaneceram foram aliados de tupinambás contra a dominação lusa e com eles lutaram na sangrenta “Confederação dos Tamoios”. Uma expulsão mais “definitiva” dos franceses aconteceu apenas em 1575… Naturalmente, após a derrocada na tarefa de “colonizar” o Brasil a partir do Rio de Janeiro, eles tiveram de comerciar de forma pacífica e cordial com os autóctones, o que gerou a fórmula de certa amizade franco-brasileira.

Do lado de cá do Atlântico, o Brasil, no seu processo de independência da metrópole, foi espelhar-se num país latino e católico que não exercesse o papel de seu dominador, no caso, Portugal. Ainda que a Inglaterra mantivesse com o Brasil relevantes relações comerciais, era um país cuja cultura não se assemelhava àquela que se formava nos trópicos. Já a França, que nos séculos XVI, XVII e XVIII se tornaria o centro cultural e referencial da Europa, surgirá aos brasileiros colonizados com uma imagem de “pátria cultural”. Assim, o que não dera certo no processo colonizador (e isso inclui tentativas francesas também no Maranhão no século XVII), viria a ser bastante exitoso numa colonização cultural que, ao longo dos séculos seguintes justificou acordos de cooperação e a importação de um ideário francês que foi da moda à formação do Exército Brasileiro. Trata-se de uma relação que, no raiar do século XIX, já tinha certa solidez, sobretudo porque a República brasileira se pautava, desde sua proclamação em 15 de novembro de 1889, em premissas do filósofo francês Augusto Comte, ou seja, o Positivismo.

“Ordem e Progresso” foi a insígnia escolhida para a bandeira nacional e o país tropical, ainda ensaiando o que considerava suas “ações civilizatórias” (construção civil, formação acadêmica etc.), espelhava-se na França, destino, inclusive, dos filhos das famílias mais abastadas que iam a Paris estudar.

O Rio de Janeiro, especialmente, tinha múltiplas inspirações arquitetônicas francesas oriundas já da “Missão Francesa” (1816) que o rei Don João VI, quando residia no Brasil, mandou vir com artistas a fim de fundar a primeira escola de Belas Artes da então colônia…
Nomes como os de Jean-Baptiste Debret e da família Taunay, entre outros, fizeram, com efeito, História, e deixaram forte influência no país. A vinda da Missão Francesa, a propósito, se constitui num fato curioso que ilustra muito bem o papel da França como país que ditava os costumes e representava o centro cultural da Europa: D. João, como se sabe, viera ao Brasil colônia para escapar justamente das invasões napoleônicas! Fugir da ofensiva francesa não o impediu de financiar a vinda de artistas daquela nacionalidade, entre os quais estavam bonapartistas confessos…

Assim, falar francês nas rodas mais aristocráticas do balbuciante Brasil do século XIX era comum, bem como eram abundantes os estabelecimentos comerciais de nominação francesa nas nascentes metrópoles. Pesquisas demonstram, inclusive, que até no mercado da prostituição havia uma tendência ao “afrancesamento”; muitas judias e polonesas, ditas polacas, se diziam francesas para atrair maior clientela e melhor preço… Conforme afirma a pesquisadora Beatriz Kushnir a respeito, a Belle Époque gerou tamanho prestígio à França que dormir com uma francesa fazia os homens brasileiros se sentirem franceses” (Baile de Máscaras, Imago, 1997).

Com o tempo, e antes que as relações culturais entre o Brasil e a França arrefecessem (processo mais tardio, após a Segunda Grande Guerra – 1939-1945), muitas foram as trocas e as “inspirações”, principalmente na imitação que o Brasil, país mais jovem e longe de ter o desenvolvimento europeu, faria daquele modus vivendi

Foi nesse cenário, engendrado durante séculos, que se desenvolveu no Brasil a aviação nacional, ou seja, refletindo uma tradicional “francofilia” brasileira. Não à toa, no começo do século XX, Alberto Santos Dumont foi trabalhar e aperfeiçoar seus aparelhos em Paris. Além de descender de franceses, o jovem Alberto sabia o quão difícil seria ousar seus experimentos tecnológicos em solo brasileiro – a dita “civilização” por aqui dava apenas seus primeiros passos e não oferecia condições para tanto. Ele escolheu o país de seu escritor preferido e inspirador de muitos aviadores que se destacaram depois, Júlio Verne (1828-1905)…

E enquanto Alberto Santos Dumont encantava a todos em Paris com seus experimentos aeronáuticos, em seu país natal houve raríssimas manifestações aéreas, ficando estas a cargo de aventureiros estrangeiros. Todavia, militares e aspirantes brasileiros estavam atentos à importância do recém-surgido avião. Desejavam ter nos trópicos a possibilidade de voar e de treinar com as tais máquinas modernas. Os laços culturais do Brasil com a França, mais uma vez, desempenharão seu papel: a aviação brasileira se manifestará com um francês que aceitou o desafio de realizar o primeiro raide aéreo, sobre a baía de Guanabara, proposto pelo extinto jornal A Noite, em cujas origens estava Irineu Marinho, futuro fundador do jornal O Globo. Tratava-se de Edmond Plauchut que, apesar de seu feito inolvidável, caiu em certo ostracismo. Pouco se sabe dele; apenas que viveu algum tempo em São Paulo e que era também mecânico.

O jornal recém-fundado deu um passo definitivo para o início da aviação no Rio de Janeiro: propôs um prêmio de dez contos de réis ao piloto que conseguisse atravessar a baía de Guanabara. Devendo aterrissar na Ilha do Governador, em 22 de outubro de 1911, o único inscrito, o francês Edmond Plauchut decolou com seu Blériot da Praça Mauá. Não obstante, o piloto, assistido por uma multidão que encheu a antiga Avenida Central (atual Rio Branco), saltou pouco antes de atingir o destino, sem se ferir. Uma pá da hélice do avião se deslocou.

Tal feito fora precedido em alguns dias pela fundação do Aeroclube do Brasil, na própria redação do A Noite. Dali em diante o Rio de Janeiro, com toda a sua atraente beleza, será palco de aviadores de várias nacionalidades, porém a presença francesa se destacou por muitos anos no céu desse território que era tido, pela maioria dos europeus, como um paraíso.
De fato, no ano seguinte à proeza de Edmond Plauchut, outro francês veio a deslumbrar os brasileiros, ninguém menos do que o mítico aviador Roland Garros (1888-1918).

Por Mônica Cristina Corrêa.

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Publicado em 19/02/2019

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