O tenente Locatelli
(Do jornal O Tijuquense)
De Buenos Aires zarpou
E às 11 horas do dia
Em nosso estado chegou”
Em 16 de setembro de 1919, cruzou os céus do litoral catarinense, durante um raide aéreo Buenos Aires – Rio de Janeiro, o aviador Antonio Locatelli, – um dos lendários heróis da aviação mundial – a bordo de sua máquina de guerra alada. Era algo inédito no Estado.
Esta história começara em 4 de março daquele mesmo ano, com a chegada do navio transatlântico “Tomaso di Savoia”, procedente da Itália, ao Rio de Janeiro. A bordo estava um grupo de oficiais italianos liderados pelo Barão Antônio de Marchi, capitão do Exército. Vinham para uma missão aeronáutica em parceria com a Escuela de Aviación Militar do Exercito Argentino. Entre eles estava Antonio Locatelli, o “jovem leão da guarda”, com pouco mais de 24 anos. Ele era aviador militar e havia participado da Primeira Guerra Mundial como observador, e de uma missão histórica sob o comando do poeta Gabriele D’Annunzio.
Durante sua permanência na Argentina de março a agosto de 1919, Locatelli realizou importantes incursões aéreas, na Cordilheira dos Andes, entre Bahia Blanca-Buenos Aires. Mas foi um raide inédito que se apresentou como excelente oportunidade para Locatelli se consagrar também na América do Sul: uma ousada viagem entre as capitais da Argentina e do Brasil.
Em 6 de junho, o Barão Antônio de Marchi enviou um telegrama desde Buenos Aires para o Ministro das Relações Exteriores do Brasil, comunicando-lhe que um dos seus oficiais aviadores realizaria o raide até a capital do Brasil, ou seja, o Rio de Janeiro, levando seus cumprimentos ao Presidente da República, Epitácio Pessoa, pelo 97º. aniversário da Independência do Brasil.
O itinerário seria: El Palomar-Buenos Aires, Santa Maria (RS), Curitiba (PR), Santos (SP) e Rio de Janeiro (RJ), aproximadamente 2.030 km a serem vencidos em dois dias. A imprensa da Argentina, do Uruguai e do Brasil despertavam a curiosidade dos habitantes dos locais onde o “raidman” passaria voando. Em Florianópolis, a população estava extasiada, pois seria a primeira vez que os “manezinhos” veriam um avião. Muitos até duvidavam da existência de tal máquina…
Tratava-se de um modelo Ansaldo S.V.A-5, biplano militar utilizado para reconhecimento e bombardeio na Primeira Guerra, famoso pela velocidade e pelos voos de longo alcance. O aparelho tinha a fuselagem coberta com folhas de compensado e asas revestidas de lona unidas por tirantes. Era razoavelmente grande, (8,10m comprimento, envergadura de 9,10 m e altura de 2,65 m) e podia atingir 230 km/h, 6.000m de altitude, com autonomia para 6 horas de voo. O avião comportava apenas um tripulante, o piloto. As cores da bandeira da Itália (verde, branco e vermelho) estavam muito bem representadas em faixas verticais na fuselagem e no leme.
A fim de conhecer as previsões meteorológicas das cidades por onde deveria passar, Locatelli enviou mensagens telegráficas para o Instituto Astronômico da Escola de Engenharia em Porto Alegre. Também solicitou que sempre houvesse combustível (querosene e óleo) e um mecânico à disposição nos locais previstos para os pousos e decolagens (inclusive nas cidades localizadas em rotas alternativas). Outra solicitação do aviador foi para que fosse colocado no campo de pouso um grande lençol branco com uma cruz preta no centro. Assim, do alto, ele poderia identificá-lo rapidamente.
Às 12:30H de segunda-feira de 8 de setembro, o tenente Antonio Locatelli, trajando o seu uniforme militar italiano cinza, decolou do campo de El Palomar com destino a Porto Alegre. A bordo do S.V.A-5 havia comida para 10 dias, caso fosse necessário aterrar em locais isolados. A travessia de Buenos Aires a Montevidéu sobre o Rio da Prata durou 40 minutos. Locatelli ainda comemorava seu recorde sul-americano de velocidade e tempo, quando uma neblina e fortes ventos contrários o forçaram a aterrar no povoado de San Ramón, no Uruguai. Ali, o “raidman” providenciou combustível e fez uma rápida inspeção em seu aeroplano, mas teve de permanecer dois dias no aguardo de melhora do tempo.
Enfim, nas primeiras horas da manhã do dia 11, o aviador decolou rumo a Porto Alegre e às 13:30 H já sobrevoava Pelotas, no Rio Grande do Sul. Às15h30, aterrissava em Canoas. O percurso de Montevidéu a Porto Alegre se realizara em aproximadamente três horas e quarenta minutos.
Em Canoas, o S.V.A-5 ficou sob a guarda de agentes da polícia e foi revisado pelo mecânico Attilio d’Avanza, além do próprio piloto. À noite, Locatelli se deslocou para Porto Alegre, onde foi recebido com grande festa popular, aclamado como herói sob chuva de pétalas de rosas em presença das autoridades locais, da imprensa e de trezentos membros da colônia italiana. No dia seguinte, acolhido pelo então Governador Borges de Medeiros no Palácio do Governo, Locatelli encantou os presentes com uma breve palestra sobre o seu raide. O piloto seguiu para o Instituto Astronômico da Escola de Engenharia a fim de obter informações meteorológicas. E estas não eram nada animadoras…
O “raidman” era aguardado com grande entusiasmo nas cidades de Florianópolis, Paranaguá, Santos e Rio de Janeiro, cidades que já possuíam campos de pouso. A diretoria do Aeroclube Braisleiro, no Rio, chegou a fazer uma reserva no Palace Hotel e solicitou ao General Bento Ribeiro autorização para que o S.V.A pudesse pousar no Campo dos Afonsos, local considerado o berço da aviação no Brasil, no qual se encontrava a Escola Militar de Aviação. O general Bento não só autorizou o pouso, mas também ordenou que o campo fosse devidamente sinalizado e que aviadores militares partissem ao encontro de Locatelli assim que o avistassem.
Nas primeiras horas da manhã do dia 16 de setembro, informes foram afixados em painéis nas praças de diversas cidades ao longo do litoral brasileiro. Em Florianópolis, um painel na Praça XV de Novembro transmitia a mensagem da estação telegráfica:
Locatelli, em Porto Alegre, prepara-se para voar devendo passar por aqui entre as 10 e 10h30 da manã para alcançar Santos às 14h30 não indo a Curityba devido as montanhas de que precisa afastar-se”¹
Mas não foi possível decolar de Porto Alegre por causa do mau tempo.
Após seis dias na capital gaúcha, Locatelli finalmente decolou às 10:35 H, com ventos favoráveis, mas sob forte neblina. Ele percebeu alguma anormalidade no motor do S.V.A-5, mas julgou coisa de pouca importância e prosseguiu para o Rio de Janeiro, com escala em Santos (SP). Jornais circulavam anunciando que o aviador deveria chegar à capital federal em breve.
Catarinenses, paranaenses e paulistas aguardavam a passagem do aviador com grande expectativa. Ao meio-dia, novo aviso foi afixado na Praça XV de Novembro:
Dentro de quarenta minutos o aviador Locatelli passará a vista de Florianópolis. Locatelli esta voando neste momento sobre a villa de Araranguá.”²
Poucos minutos depois um novo aviso: O S.V.A-5 havia passado sobre Laguna.
Naquela terça feira, uma grande massa popular já se concentrava nas imediações da praça em Florianópolis, quando o S.V.A-5 foi avistado. Ao perceber a aglomeração, o tenente-aviador Locatelli iniciou a descida do aparelho e realizou algumas evoluções. O povo, “levado às raias do delírio”, aplaudiu.
Às 12h35 o aparelho do aviador Locatelli passou por esta cidade fazendo duas ligeiras curvas a grande altura. O aeroplano foi visto por milhares de pessoas, que o esperavam anciosas, aglomeradas nas praças e nas ruas da capital.”³
E após um longo tempo de espera, apareceu a altura de alguns milhares de metros o interessante aparelho que, fazendo dificilíssimas manobras passou sobre a nossa principal praça tomando o rumo norte. Locatelli, embora não aterrasse foi delirantemente aplaudido pelo povo, que vivou enthusiasticamente o grande aviador,”⁴
Entende-se a festividade do povo que via pela primeira vez um avião sobrevoar a cidade. Mas, se em Florianópolis o voo causou arrebatamentos, logo adiante os problemas se apresentaram.
Locatelli seguiu rumo a Santos passando rapidamente sobre a cidade de Tijucas, onde alguns habitantes puderam assistir incrédulos à sua rápida passagem:
Dia 16 do corrente às 13 horas, mais ou menos, foi visto a altura de algumas centenas de metros, na sede desta villa; o esperado aeróstato dirigido pelo perito aviador italiano Tenente Locatelli, que se destinava ao Rio de Janeiro, no raid que empreendeu de Buenos Ayres”.⁵
Aproximadamente às 13:30 H, próximo à cidade de Itajaí, o motor do aparelho continuava dando sinais estranhos. Como a planície da Ressacada, em Florianópolis estava assinalada por Locatelli em seu mapa como o melhor e mais próximo campo de pouso alternativo, decidiu ele retornar àquela cidade que se encontrava a 40 km de distância. Às 14 horas, Locatelli reapareceu sobre a cidade de Tijucas, desta vez, sobre a antiga Igreja Matriz. Nas proximidades da praia do Pontal Norte, (conhecido pelos habitantes como Copalama)⁶, havia um grande terreno plano. O aeroplano perdia força de motor e o aviador desistiu de prosseguir para a capital catarinense. Sem pestanejar, ele picou o nariz do avião em direção àquele terreno, iniciando uma vertiginosa descida. Quando as rodas do aeroplano estavam prestes a tocar o solo, Locatelli percebeu que o terreno, embora parecesse compacto, firme, na verdade era uma extensa área pantanosa coberta por um tirirical (cyperus rotundus). Numa ação desesperada para reganhar altura, o aviador puxou o manche para trás, mas sem êxito. Segundos se passaram desde o momento em que Locatelli se desprendeu do cinto de segurança até a colisão do S.V.A-5 com o solo encharcado. O avião capotou e o piloto foi violentamente catapultado para fora da cabine.
Atraídos pela queda do “aeróstato”, muita gente acorreu e viu o aeroplano com as rodas para cima. Alguns metros mais longe, praticamente enterrado vivo, estava o piloto, socorrido antes que sucumbisse asfixiado no lamaçal.
Affluiu ao local, onde aterrou o aparelho, enorme ocurrencia de povo de diversos pontos de Tijucas e dos municípios visinhos, afim de observaram o que pela primeira vez, apareceu em nossa terra”⁷.
Foi uma correria, só vendo. Uma semana inteira de movimento, em Tijucas. Naquele tempo se ouvia falar neste aparelho. Mas duvidava-se da sua existência. E quando menos se esperava, eis que apareceu o ‘bichinho’ nos céus de nossa cidade. Não sei explicar o que aconteceu, mas a verdade é que ele caiu num tirirical próximo a Santa Luzia. Veio gente de todos os cantos de nosso município só para acreditar mesmo, que o tal bichinho existia de fato”.⁸
Apesar da gravidade do acidente e do grande susto, o aviador sofreu apenas escoriações leves. Mas era o fim do raide, o avião não poderia ser reparado rapidamente.
Após pegar suas bagagens e seus pertences no avião, Locatelli foi conduzido a cavalo para o centro da cidade de Tijucas, onde foi recebido pelas autoridades locais. De lá, enviou mensagem telegráfica ao Governador Hercílio Luz. Em seguida, Locatelli foi convidado para jantar no casarão da Sra Francisca Angeli Gallotti, conhecida na cidade como Viúva Gallotti, de origem italiana. Enquanto jantavam tranquilamente em Santa Catarina, uma multidão aguardava o aviador sob forte chuva na praia José Menino, em Santos, sem imaginar que o raide havia sido interrompido.
Mas Locatelli não partiria de Santa Catarina sem pisar em Florianópolis. Tão logo soube da queda do avião, o governador mandou seus representantes para lhe prestar socorro. Assim, à noite, um automóvel oficial chegou ao canal do Estreito, de onde uma embarcação o levaria ao Trapiche Municipal, no centro de Florianópolis. Lá, uma multidão formada por cidadãos de todas as classes sociais recebeu entusiasticamente Locatelli.
Mais tarde, Antonio Locatelli, ostentando seu uniforme de oficial do Exército italiano e com o peito ornado de medalhas, dirigiu-se para o interior do Palácio do Governo, onde foi recebido no salão nobre pelo próprio Governador, o Secretário do Interior e Justiça, José A. Boiteux, entre outras autoridades, além de representantes da imprensa. Na ocasião, após uma breve palestra sobre a sua experiência, Locatelli explicou que precisava seguir imediatamente para a Itália, onde pretendia fazer parte do raide Roma-Tóquio. Para isso, ele pretendia embarcar em Florianópolis no Paquete “Anna” da ENNH – Empreza Nacional de Navegação Hoepcke, rumo a Santos.
Não havendo lugar nesse navio, o Governador deu providências para atender o piloto. Assim, dia 17, pela manhnã, Locatelli, após calorosas despedidas no Trapiche Rita Maria, recebeu de um grupo de senhoritas um ramalhete de flores naturais e embarcou, diante de uma multidão, no paquete Max, também da Hoepcke, com destino a Santos.
Foi-se o aviador, ficou o avião avariado. No dia seguinte à partida de Locatelli de Florianópolis, o engenheiro Olavo Freire Junior, Diretor de Obras Públicas, viajou para Tijucas a fim de providenciar a guarda do Ansaldo S.V.A-5 até que fosse decidido o que seria feito deste.
Dia 29, o jornal “A época”, do Rio de Janeiro, publicou a seguinte noticia:
Por intermédio do major Benigno, chefe do Depto de Aviação Italiana o aeroplano Ansaldo SVA utilizado por Locatelli foi doado ao governo do estado de SC em agradecimento as atenções que lhe foram dispensadas pelo governador Hercilio Luz”.⁹
Em novembro, o Ansaldo S.V.A-5, agora de propriedade do Governo do Estado de Santa Catarina, foi encontrado parcialmente desmontado em Tijucas. Na época foi instaurado um rigoroso inquérito policial. Após idas e vindas com os problemas de conservação, o governador Hercílio Luz acabou cedendo o avião ao Aeroclube Brasileiro, em 1920.
O evento da passagem do aviador Locatelli por Santa Catarina é um marco por se tratar do primeiro avião avistado na capital do Estado. O raide intentado pelo aviador italiano e alguns outros só seria vencido pelo brasileiro Edu Chaves. Mas ainda se tratava de voos experimentais, de aventuras de homens corajosos. A aviação comercial chegaria definitivamente a Santa Catarina com a Latécoère, em 1925, e se implantaria em Florianópolis em 1928, com a inauguração do Aeroporto Adolpho Konder, ou seja, o antigo terreno de pouso do Campeche. A essas alturas, a empresa, sob o comando do novo dono, Bouilloux-Lafont, já tinha o nome de Aéropostale.
¹ O Estado 16 de setembro de 1919. Ed. 1310.
² O Estado 16 de setembro de 1919. Ed. 1310.
³ O Estado, 16 de setembro de 1919. Ed. 1301.
⁴ Republica, 17 de setembro de 1919. Ed. 286.
⁵ O Democrata, Camboriú, 22 de setembro de 1919. Ed.20, paginas 1 e 2.
⁶ Onde atualmente funciona a fábrica de Café Jurerê no bairro Praça.
⁷ O Democrata, Camboriú, 22 de setembro de 1919. Ed.20, paginas 1 e 2.
⁸ CAMPOS, Ademar, ABDALA, Nacir. História de Tijucas: uma viagem no tempo. Tijucas, SC: Editora Jornal do Povo, 2003. pag. 117.
⁹ A época, 29 de setembro de 1919. Ed. 02654.