Aviadores brasileiros na França; aviadores franceses no Brasil

O aviador Roland Garros (1888-1918), piloto herói que dá nome ao Stade de France (desde 1928) e ao prestigioso prêmio dos exímios tenistas do mundo, veio ao Brasil em 1912.
Como um dos mais intrépidos pilotos de seu tempo, bateu vários recordes, trouxe ao país sua cooperação. Acompanhado de outros três colegas de aviação (Edmond Audemars, René Barrier e Charles Voisin, este, construtor de aviões), Garros veio com a Queen Aeroplane Company, de Nova York, pela iniciativa de um rico empresário americano (Willis Mc Cormick).
O objetivo era partir por seis meses na América Latina. Inicialmente sem muito entusiasmo, Roland Garros acabou por viver aventuras dignas de nota especialmente no Brasil. Ele encantou o público e se encantou também, conforme suas impressões sobre o Rio de Janeiro relatadas nas suas Memórias:

(…) sobretudo, usufruíamos de um dos mais belos panoramas do mundo. Aos nossos pés, imenso, o Rio, disseminado na vegetação tropical: depois, a água calma da baía. (…)

Havia diante de nossas janelas alvoreceres inauditos. Às vezes, por acaso, um de nós se levantava a tempo e chamava os outros. Nós nos debruçávamos todos os quatro e contemplávamos longamente a aurora. Eram cenas grandiosas. Num céu ao mesmo tempo imenso e mais vivo que os nossos, a luz se anunciava e expandia com força. Os tons mais ricos, preponderantes, sofriam transformações violentas. Por um instante, uma grande animação silenciosa reinava na natureza, era toda uma vida ardente daquele clima que despertava. E de repente o sol jorrava, apagando as nuanças e as sombras sob uma onda de claridade aterradora.

À noite, era outro espetáculo feérico. Aos nossos pés, o Rio cintilava silencioso, diante do espelho escuro de sua baía e acima de nossas cabeças, o céu era tão prodigiosamente carregado de estrelas que parecia uma abóbada de diamantes”. (Mémoires, Phébus, 2016, p. 260)

Roland Garros, nascido na Ilha da Reunião, viveu com seus pais também na antiga Conchinchina (Vietnã). De volta à França, logo cedo ele se interessou por automóveis e pela aviação. Chegou a possuir sua própria loja de carros esportivos ao pé do Arco do Triunfo em Paris, cujos rendimentos lhe possibilitaram investir em sua paixão: os aviões. É, pois, como aviador que ele fará história e não apenas na França. Seu primeiro aparelho? Um Demoiselle, criação de Santos Dumont.

Os “Demoisellites

Foi com um grupo de “Demoisellites” que Garros veio ao Brasil, isto é, aviadores que pilotavam o Demoiselle, modelo que Santos Dumont havia liberado para construção. Os aviadores pretendiam fazer demonstrações aéreas no Brasil e, por essa razão, Garros acabou desempenhando o papel de trazer ao conhecimento da população brasileira a invenção do próprio Santos Dumont, uma vez que este estava em Paris. De certa forma, ambos exerceram papéis memoráveis “em céus cruzados”…

Mas esse fato é reflexo do que se passava no desenvolvimento da aviação, em que Paris se fazia um polo de atração, uma passagem obrigatória. Num texto a respeito, o historiador Pierre Blay¹ destaca que até mesmo os irmãos Wrigth e Charles Lindbergh, americanos, vêm a Paris como para endossar seus feitos. Capital cultural europeia, Paris será sobretudo um ponto atrativo para as indústrias ligadas à aeronáutica e não são poucas: têxtil, siderúrgica, petrolífera… Os fabricantes de motores de aviões, como bem ressalta Blay, passam a atuar “intramuros”, como a Renault, isto é, tendem a deslocar as fábricas para dentro da capital em detrimento da periferia etc.

Embora a empresa que trouxe Garros e seus companheiros ao Brasil fosse norte-americana, ressalte-se que ela fabricava modelos franceses. É o modelo Blériot que Garros pilotará no Rio de Janeiro e em São Paulo, também com o intuito de que essa marca fosse aderida pelos interessados em desenvolver a aviação no país, entre eles, os militares.

A importância da presença de Roland Garros no Brasil pode ser demonstrada já em seu primeiro voo, em 9 de janeiro de 1912, no bairro do Castelo, conforme ele mesmo narra em suas Memórias:

Depois de alguns ajustes, minha primeira saída foi uma visita ao presidente da República. Eu atravessei a cidade e cheguei sobre a residência que me haviam indicado. O chefe de Estado, avisado, me aguardava com seu entourage na varanda. Eu lhe dediquei uma espiral do meu estilo, joguei meu cartão de visitas, depois voltei ao aeródromo. Esse início causou uma feliz impressão à opinião pública” (Op. cit., p.262).

Era, pois, o início de uma série de voos inolvidáveis de Garros no Brasil, todos com êxito para exaltação popular e para o convencimento de autoridades da importância de desenvolver-se uma aviação local. Os resultados não tardaram:

Na manhã seguinte a uma de nossas exibições, recebemos inadvertidamente a visita de dois senhores civis. Eles se apresentaram assim: Major Paiva Neiva, chefe do comitê de aviação militar no Brasil, e o tenente Kirk. Esses senhores desejavam entrar em contato conosco, obter informações úteis a seus trabalhos. Eles faziam questão de obter para nós uma subvenção do governo em troca de nossa ajuda para uma série de experiências e demonstrações. Negócio fechado rapidamente”. (Mémoires, 267).

De fato, a partir desse momento, uma cooperação entre aviadores franceses e aspirantes brasileiros se estabeleceu e logrou êxito. Roland Garros levou mais de trinta oficiais candidatos para voar. Como ele diz:

Em suma, com o meu pequeno monoposto, fiz o melhor que pude no meu papel de iniciador. Distribuí a todos conselhos e incentivo e forneci ao Major (Paiva Neiva) muitas das indicações para seu relatório sobre a organização da aviação brasileira”. (Mémoires, p.273)

De fato, entre os “iniciados” por Roland Garros, destacou-se o tenente Ricardo Kirk. Depois dessas experiências, o tenente foi enviado à França já em outubro e obteve seu brevê de piloto na escola de Étampes, além de adquirir aviões para a nova escola de aviação militar que seria fundada no Campo dos Afonsos, em fevereiro de 1914, com 9 modelos franceses (Farman e Blériot) e 60 alunos procedentes da Marinha e do Exército. Infelizmente, porém iniciava-se a Primeira Guerra Mundial (11914-1918) e as dificuldades enfrentadas na escola de aviação foram inúmeras. Isso decorreu sobretudo da inexistência de uma indústria local: impossível, durante o período beligerante, conseguir aviões e peças… Cinco meses depois de inaugurada, a escola era fechada.

Não obstante, finda a Primeira Guerra, o Brasil novamente intenta criar uma aviação militar e o fará através da vinda da “Missão Francesa de Aviação Militar”, cujos integrantes chegariam em 1919. Roland Garros estava certo ao sentir-se satisfeito que sua participação nos primórdios da aviação brasileira desses frutos. Sua influência se prorrogou e seus feitos mereceram destaque. Antes de partir, Garros escolheu voar sobre a região serrana do Rio de Janeiro. Sobre Petrópolis, ele fez, munido do verascópio (máquina fotográfica com duas objetivas) que havia adquirido antes de deixar seu país, as primeiras fotos com profundidade da região. O destino mostraria num futuro não muito distante que a cidade construída por D. Pedro II, imperador, aliás, francófilo (seu instrutor fora um descendente de Taunay, da Missão Francesa de 1916), por ciência e tecnologia, iria se tornar um reduto de aviadores. Santos Dumont ali construiu sua casa dita “A Encantada”, hoje museu de grande visitação. Em Itaipava (município de Petrópolis), o piloto francês Marcel Reine, da Aéropostale compraria uma casa de campo e fazenda, atraindo companheiros para descanso.

Depois da estada na capital federal, Roland Garros esteve também em São Paulo. Inicialmente temeroso de estar num local onde não conhecia ninguém, o aviador acabou por ter experiências fascinantes entre a capital paulista e Santos, despertando também nesses locais o gosto pela aviação e a admiração popular. Todavia, Garros levará de São Paulo um valor inestimável: a amizade do também piloto e pioneiro do céu Edu Chaves.

¹R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 175 (463):93-108, abr./jun. 2014

Por Mônica Cristina Corrêa.

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Publicado em 03/03/2019

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