Brasil - França
30/01/2013

A Festa de Rouen: brasileiros dançam para os franceses às margens do Sena

Um encontro linguístico no Renascimento

No mês de outubro de 1550, apenas meio século depois do descobrimento do Brasil, a cidade francesa de Rouen, local do martírio de Joana d’Arc (1431), foi palco de um acontecimento inusitado. Às margens do rio Sena, diante da abrilhantada corte francesa do rei Henrique II, 50 índios brasileiros se uniram a 250 marinheiros normandos e bretões para encenar a vida selvagem conforme os costumes da costa brasileira.

Tal episódio era parte de uma “entrada”, celebração consagrada ao rei e à corte quando visitavam uma cidade. Para rivalizar com Lyon, onde as “entrées” haviam sido magníficas, os rganizadores de Rouen, além dos famosos carrosséis, desfiles e diversões, deram destaque a uma “festa brasileira”. Nem a estação, que já abria as portas a mais um rigoroso inverno europeu, impediu que índios e marujos ficassem nus. Enxertou-se a paisagem francesa com plantas, frutas e bichos tais como saguis, papagaios, araras etc. trazidos do Brasil, adornando um cenário no qual também foram instaladas tabas e redes. Assim, os “atores” encenaram a caça e a pesca indígenas, bem como suas distrações e o escambo de quinquilharias européias por pau-brasil. E, principalmente, um combate.

Os contatos entre franceses e brasileiros já datavam de longe, pois, desde 1504, o capitão normando Binot de Gonneville já fizera incursões pelo litoral de Santa Catarina, levando consigo o índio Içá-mirim, de quinze anos, cujo nome se transformou, por deformação, em Essomericq. Decerto, este foi o primeiro brasileiro a pisar na França e, nunca tendo retornado ao Brasil, foi casado com uma parenta do capitão e ali deixou 14 descendentes mestiços.
Todavia, o episódio de Rouen é peculiar porque teatralizou um encontro cultural dos mais exóticos e acabou por promover um fenômeno linguístico também anômalo. Toda a encenação deu-se em tupi.

Deve-se a um brasilianista francês, no século XVIII, a descoberta do documento de 1551 que relata a festa brasileira de Rouen. Trata-se de Jean Ferdinand Denis, que esteve no Brasil de 1816 a 1820, foi assíduo frequentador de bibliotecas e escreveu, na França, muitos livros sobre o país. Entre suas obras, Denis analisou a peça tirada dos escombros, ou seja, o relato (atribuído a poetas de antanho), com dedicatória em ouro a Francisco I e contendo 58 ilustrações. Mas foi além e acrescentou dados e textos sobre os primórdios da comunicação européia com o Novo Mundo: segue-se à análise a transcrição de um dos registros mais antigos em língua tupi, os poemas brasílicos do padre Cristóvão Valente. Tal obra de Denis só fora traduzida para o português em 1944. Mas chegou recentemente ao mercado uma nova edição, desta vez trilíngue (francês, português e tupi), da Editora Usina das Ideias, na qual o professor Eduardo Navarro (USP) verteu para o português os versos em tupi.

Na obra, outro fato discutido pelo brasilianista é a contribuição do grande escritor francês no século XVI, Michel de Montaigne, autor de um ensaio certamente fundador do “mito do bom selvagem”, Dos canibais. No texto, Montaigne relativiza o conceito de “bárbaro” motivado por reflexões a partir de uma conversa com um índio brasileiro em Rouen. Denis lembra que é também ao ensaísta que se deve a transcrição de uma canção em tupi (a mesma consta da atual edição) e que o mesmo compara esta língua ao grego: “Ora, tenho comércio suficiente com a poesia para julgar isto: que não somente não há nada de bárbaro nessa imaginação, mas que ela [a canção] é completamente anacreôntica. Sua linguagem, por fim, é uma linguagem suave e tem o som agradável das palavras retiradas das terminações gregas”.

Aliás, Montaigne definiria a representação das lutas tribais na festa de Rouen com uma palavra oriunda do grego: “ciomaquia”, ou seja, “combate com a sombra”, de skia (sombra) e mâkke (combate).

Desse encontro, vários termos do tupi acabaram incorporados ao vocabulário francês; outros passaram antes pelo português. (ver box). Essa interferência entre as línguas poderia ser considerada uma ressalva ao massacre dos índios. A esse respeito, Ferdinand Denis cita oportunamente Humboldt (Quadros da natureza), lembrando que o viajante lamentou o fato de encontrar num papagaio “o único depositário de um povo aniquilado”, em referência à língua dos atures, exterminados pelos caraíbas. O estudioso alemão transcreveu cerca de 40 palavras que apreendeu do animal e deixou com isto o último registro dessa cultura longínqua.  Não por acaso, Denis evoca seu exemplo, pois ele próprio ressalta o valor dos idiomas ditos primitivos: “Essas línguas [indígenas] desprezadas pelos cientistas não são completamente privadas de um tipo de literatura apropriada aos índios convertidos, e seria muito bom que se reimprimissem monumentos desse gênero, ou que se imprimissem os que não tivessem sido jamais publicados”.

Algumas palavras de origem tupi assimiladas no vocabulário francês. A maioria delas provém dos nomes de animais e plantas, completamente desconhecidos à época na Europa.
Acajou > akayu, do tupi (1557, voltou do francês “acajou”, para o português “acaju”.
Ananas > naná (1544, passou pelo português que, somente depois do século XIX, passa a usar “abacaxi”.
Agouti > akuti (cutia) (1578)
Boucan > mokaém – moquém (1578, adquiriu também o significado de “barulho” ou “bagunça”).
Jabiru > jabiru (1754)
Jaguar > já’gwara (1761)
Manioc > mandi’okla (mandioca) (1555)
Paca > paka (1622)
Sagouin > sahi – sagüi (1743, passou pelo português “saguim” e também designa pessoa “suja e grosseira” em francês).
Sarigue > sari’gwe (1763, passou pelo português)
Sapajou > sagw’a – sajum – (1654, em francês também designa “homem pequeno e feio”).
Tamandua > tamandu’a (1640, passou pelo português)
Tapioca > tapi’oka (1651, passou pelo português)
Tapir > tapi’ira (1741)
Tatou > ta’tu (1553)
Toucan > tu’kã ou tu’kana (1557)

Por: Mônica Cristina Corrêa