Brasil - França
30/01/2013

Os tradutores do Novo Mundo

A festa de Rouen aconteceu cinco anos antes de a França fazer uma tentativa de implantação no Brasil. Em 1555, Nicolas Durand de Villegaingnon veio fundar no Rio de Janeiro a “França Antártica”, que não durou mais do que três anos. Mas aos relatos de Jean de Léry e André Thévet, presentes na expedição, deve-se atribuir o maior conhecimento dos tupinambás. Andréa Daher, especialista da UFRJ, destaca que nos relatos franceses sobre o Brasil dos séculos XVI e XVII “a inscrição da língua tupi – na forma de diálogos de palavras soltas de orações ou de discursos traduzidos – é maciça” (2004).

Em 1612, os franceses investiram em “Saint Louis du Maragnan”, mas também foi infrutífero. Legaram, porém, o nome da capital do Maranhão e os relatos de viagem dos frades capuchinhos que ali estiveram, Claude d’Abbeville e Yves d’Evreux, também com significativas transcrições da língua autóctone. Afora isso, seis índios foram por eles levados e batizados em Paris. Diante do rei, proferiram orações católicas em sua língua materna.

Apesar de efêmera, a passagem dos índios na França deixou traços indeléveis, como atesta Ferdinand Denis: “Como já provamos, os tupinambás do século 16 não tinham deixado traços de sua passagem na França somente no curioso volume do qual oferecemos aqui uma análise. As estruturas de madeira do hotel Île du Brésil, conservadas no museu de Rouen, em baixo relevo tão conhecidas na igreja de Dieppe(…). A bela biblioteca de Rouen (…) possui também um livro manuscrito que data sem dúvida da época em que aparece a triunfante entrada”.

No entanto, foram os testemunhos escritos que legaram o essencial da cultura sul-americana praticamente extinta. Mas o trabalho dos viajantes franceses pode contar com a colaboração discreta de homens que a História nem sempre reconheceu. Trata-se dos “truchments”.

Desde a descoberta do país, franceses, os « maïr”, navegavam ao longo da costa ainda pouco vigiada do Brasil e comercializavam com os índios. Para isso, deviam aliar-se a estes contra os portugueses, ditos “peró”. Essa situação aparece aliás claramente na encenação de Rouen, que termina com a simulação de um combate entre índios aliados dos franceses contra os parceiros dos portugueses. Nem é preciso dizer quem “venceu o combate” às margens do Sena…

Entre os franceses e os índios a comunicação era então imperativa e os que a tornaram possível foram os “truchments”, jovens intérpretes, na maioria normandos, trazidos e deixados na floresta para que aprendessem a língua e os costumes locais. Esses “profissionais” eram equivalentes aos drogmans, antigos intérpretes dos povos do Levante.

Mas no Novo Mundo o papel desses « tradutores » foi diferente. Muitos dentre eles, vindos voluntariamente ou não, acabaram por se adaptar de maneira simbiótica com os índios e jamais retornaram à vida europeia; foram mais tarde chamados de “asselvajados”. Vários outros desapareceram sem deixar traços.

E os portugueses, evidentemente, tinham também seus informantes, que chamavam de “lingoa”, entre os quais se contam os náufragos como João Ramalho e o legendário Caramuru. Os “línguas” conheciam também a geografia e os costumes locais. Todavia, em vista da diferente posição entre Portugal e a França, os portugueses impunham a conversão dos índios – missão “civilizadora” por trás da qual se escondiam os fins comerciais europeus. Para os franceses, ao contrário, era necessário que a conversão fosse pacífica e de vontade própria dos colonizados. Por isso, em suas narrativas, é frequente, como explica Andréa Daher (2004), que se transcrevesse a “palavra do índio”, coisa que não existe nos textos portugueses.

Essas constatações mostram o emaranhado entre língua e cultura desde sempre. A título de exemplo, um fato curioso e revelador da percepção da realidade dos europeus transparece em seu julgamento: eles imaginavam que o tupi não tivesse “f”, “r” ou “l” porque seus falantes não tinham fé, rei ou lei…

A aculturação dos truchements ou línguas foi indispensável para a transmissão de valores de uma cultura para outra. À força ou não, eles exerceram um papel fundamental. Caramuru, por exemplo, um português que se chamava Diogo Álvares e que foi provavelmente náufrago na costa brasileira em 1500, teria sido um perfeito “asselvajado”. Seu papel de intermediário foi importante para os portugueses e franceses. Aliás, Caramuru foi à França com a famosa índia Paraguaçu e eles foram batizados e casados à maneira cristã.

Mas vários intérpretes dessa época eram exilados, abandonados entre os índios: condenados em seu país, não tinham escolha. Quantos morreram? Não se saberá jamais, porque mesmo nas transcrições em tupi nos livros dos viajantes eles são raramente mencionados, e nunca como coautores. Sem suas preciosas intervenções, entretanto, não se conheceria o território, nem a língua dos índios.

Como precisa a historiadora Janaína Amado da UnB (Universidade de Brasília) (1998), a coroa portuguesa começa a vigiar mais de perto os “línguas” no início do século 16, pois não desejava mais que os súditos do reino fossem confundidos com os “habitantes da colônia”; estabeleceu-se uma distinção apropriada para garantir as relações comerciais, as línguas passaram a ter, então, missões temporárias. Enquanto isso, os capuchinhos franceses do Maranhão investiram no conhecimento da língua tupi a fim de que os índios professassem de viva voz seu desejo de assimilação diante do rei da França. Assim, os primeiros fundavam as bases de uma colônia, à qual acabariam por impor o português. Os últimos, sem perceber, fundavam a etnografia de
uma terra que nunca conquistariam.

A palavra « turgimão » vem do árabe « tradjeman », que significa « expositor » e sua adoção corrente em português data do século 15. A palavra existia em outras línguas com o mesmo sentido: “truchement” em francês, por exemplo e “turcimano” em italiano. Em francês a expressão “par le truchement de” significa, aliás, “por intermédio de”. Nos documentos portugueses, a partir do século 16, a palavra será substituída por “língua” e cairá em desuso.

Uma outra denominação desses primeiros intérpretes do reino português dos Quinhentos é “jurubahâsa” ou “jurubaça”, já usada em 1517. Esta é bem mais rara e ligada às conquistas na China. De fato, a palavra de origem malaia é “bahâsa”, do sânscrito, quer dizer “língua”, o conjunto significando “expert em línguas”.

Por: Mônica Cristina Corrêa