Paul Vachet percorreu o que chamou de “estradas inverossímeis” de Santa Catarina para, enfim, encontrar no Campeche um terreno conveniente. Mas a compra das terras se revelou um episódio anedótico...
Em seguida, foi a compra do terreno de Florianópolis. Eu havia recebido de M. Bouilloux-Lafont a ordem de comprá-lo e os fundos necessários foram postos à minha disposição. Mas eles se revelaram superabundantes, pois o preço global foi ridiculamente baixo. Eu digo global porque, de fato, o conjunto da superfície que me convinha estava dividido numa vintena de parcelas pertencentes a humildes pescadores das redondezas. Mas frequentemente seus títulos de propriedade não estavam regularizados, assim como o estado civil dos pescadores. Alguns deles não eram legalmente casados com suas companheiras, as quais, no entanto, haviam lhes dado muitos filhos. (...) Mandei vir de Florianópolis um juiz e uma tarde foi dedicada àqueles casamentos. Naturalmente, minha mulher e eu fomos solicitados como testemunhas pela maioria dos ‘noivos’ e, neste caso, tais testemunhas se tornaram ‘compadres’ e ‘comadres’ dos casais. Assim, durante anos, cada vez que nós aterrissávamos no terreno de Florianópolis, éramos cercados de muitos pescadores que nos tratavam por ‘compadre’ e ‘comadre’ com grandes reforços de vigorosos tapinhas nas costas e do ‘abraço’.”
Paul Vachet, do livro Avant les Jets, 1954
No Campeche, a história da Aéropostale foi preservada especialmente pelos habitantes do remoto lugar. Um pescador conhecido por “Seu Deca” narrava como feitos aventurosos a sua amizade com um dos pilotos, um tal de “Zeperri”. Dizia ele que o tipo francês gostava de estar pela escala de Florianópolis. Tratava-se, naquele tempo, de um dos vários pilotos da Aéropostale que passaram na escala. Todavia, esse “Zeperri” veio a se tornar o autor de um dos livros mais lidos do mundo, O Pequeno Príncipe, que escreveu em 1943. Ele era ninguém menos do que Antoine de Saint-Exupéry, dito “o poeta da aviação”.
Um dos filhos de Seu Deca, Getúlio Inácio, preservou as memórias de seu pai e, com isto, a história do próprio bairro do Campeche, que exibe hoje em suas placas “Rua da Aviação Francesa”, “Servidão dos Pilotos” e imóveis “Edifício Latécoère”, “Residencial Antoine de Saint-Exupéry”. E o ponto central: “Avenida Pequeno Príncipe”...
Quantas noites foi preciso esperar o esgotamento para nos separarmos, enfim, à frente do aeroporto do restaurante Coupole, ou no hall do hotel Lutécia! Quantas noites também eu passei esperando por ele, nervoso e tenso, não porque ele estivesse sempre atrasado, mas porque eu sabia que ele estava em Florianópolis ou na Cirenaica e o rádio não dava notícias sobre o regime de seu motor”.
Léon-Paul Fargue, do livro “Homenagem Póstuma: Lembrança de Saint-Exupéry”, 1945
Dormir no Campeche significaria dormir no casarão dos pilotos, que tinha, entre suas finalidades, ser um local de pernoite. As situações de impossibilidade de prosseguir viagem eram muito frequentes nos tempos da Aéropostale.
Os habitantes da região, aliás, costumavam chamar o casarão de “bâtiment” ou “casa da popota”. Ambas as expressões têm origem na língua francesa e seu uso advém do que os ilhéus ouviam dos estrangeiros: “bâtiment” se refere à “edificação” e “popota”, na realidade, se refere a “popote”, que designa “rancho”.
Mas nas escalas, depoimentos de moradores do Campeche à época, revelam que os casarões e hangares eram também locais de bailes, pois os franceses traziam gramofones e discos...
Voltamos à ligeira faixa de areia que separa as vagas da floresta. O céu está completamente fechado. Os tornados se sucedem, sacudindo o aparelho, a chuva respingava nos mapas.
Mal consegui ver Florianópolis e seu porto, varridos por cataratas, e o campo de aviação sobre o qual pousamos molemente.– É melhor vocês passarem a noite aqui, sugere o chefe da escala. Está chovendo em Porto Alegre também.
– Azar. A gente vai continuar.
O aparelho que pegamos tem um banco ao lado do radiotelegrafista. Eu me instalei ali, a convite de Pourchas, contente de ter um companheiro.
Do livro Les chemins du ciel de Jean-Gérard Fleury, 1933
O teto está muito baixo. Reine é obrigado a voar a alguns metros do solo, sobre uma praia interminável. Em alguns pontos, autóctones brincam na água e, imersos até o umbigo, eles olham nossa bólide se afastando."
Ele (Jean Mermoz) havia acabado de aterrissar em Florianópolis, taxiou até a pista. O mecânico do terreno que deveria esperá-lo não estava ali. Chegou três minutos depois. O rosto de Mermoz empalideceu sob uma de suas piores cóleras. Ele sacudiu o mecânico esfarrapado, gritando:
– Demitido, cafajeste! Que eu não te veja mais aqui ou te quebro! E o que você está esperando para encher o tanque? Quer que te mostre agora?
Incapaz de suportar a cara daquele que lhe fizera perder três minutos de correio, temendo os efeitos de seu próprio furor, Mermoz se enfiou na cantina do terreno e, de uma só vez, tomou três garrafas de cerveja. O chefe do aeródromo foi encontrá-lo ali. Era um velho camarada.
– Sabe – disse-lhe – não foi culpa dele.
– Não, não – gritou Mermoz, não quero saber nada.
– Escuta, Jean… A mulher dele está em trabalho de parto, ela desmaiou, chamaram. Ninguém te esperava tão já. Você deve ter cortado pelo interior.
– É verdade… É verdade, eu cortei pela floresta, murmurou Mermoz.
Quando ele voltou ao avião, o mecânico se afastou com receio.
– Você encheu o tanque direitinho, disse Mermoz, sem olhá-lo, desta vez passa.
Estava amassando na palma da mão uma nota de cem mil reis.
Na hora de decolar, enfiou a nota no macacão todo sujo do mecânico.”
Joseph Kessel, do livro Mermoz, 1938
Meus contatos pessoais com Jean Mermoz foram pouco numerosos e muito breves. Aconteceu entre 1934 e 1936, em Florianópolis, no velho campo de aviação outrora criado pela Companhia Latécoère. Era quando aparecia o avião da “Linha”, sempre no alvorecer.
A escala durava apenas o tempo suficiente para encher os tanques e retirar e carregar as malas postais.
Eu me lembro bem daquele rosto simpático e másculo, o físico de atleta, a tez bronzeada pela exposição ao sol, aqueles cabelos rebeldes, o riso franco que o caracterizava. De nossas rápidas conversas, de tão cordiais, eu guardava a impressão de ter me aproximado de uma espécie de super-homem; era o mesmo com Saint-Exupéry, Guillaumet, Étienne, Antoine, Reine e seus outros companheiros que nos surpreendiam pelo senso de dever e nos tocavam com o caráter fraterno de sua camaradagem”.
Brigadeiro Huet Sampaio, da Revista Icare, n.119, T.1
Nas proximidades de Florianópolis, o piloto Henri Delaunay, com o mecânico Marceau, transportando num Laté 26 o jornalista Manoel Bernardino e o cinegrafista Antônio Ferreira, do jornal carioca A Noite, sofreu um gravíssimo acidente em maio de 1928 . Apesar disso, o piloto, heroicamente, pôde salvar seus passageiros. Mas ele teve queimaduras de terceiro grau porque manteve as mãos e os pés no fogo para conseguir pousar o avião em condições mínimas.
O local era o antigo vilarejo de Armação da Piedade, em Santa Catarina. Delaunay foi socorrido por pescadores e conduzido ao Hospital de Caridade de Florianópolis, onde permaneceu internado até 24 de agosto de 1928.
Tenho, do que se seguiu, somente vagas lembranças... O interminável balanço de uma canoa no fundo da qual eu gemia, deitado sobre as malas postais. Muito, muito mais tarde, eu me revi numa poltrona pomposa, no meio de uma lancha, indo para a Ilha de Santa Catarina, onde me esperava, providencialmente, um dos melhores cirurgiões alemães que possuía o Brasil. Mantinham, sem questionar, minha voluptuosa prostração à base de morfina...”
Henri Delaunay, do livro L’Araignée du Soir, 1968
O jornalista de A Noite, Manoel Bernardino, prosseguiu viagem até Natal e fez várias crônicas a respeito de seu périplo na Aéropostale. Porém, ele alega ter deixado à revista feminina “Vida Doméstica – Revista do Lar e da Mulher”, segundo suas palavras, “o aspecto religioso de sua excursão”:
O Laté 26 da Aero Postal, comandado por Henry Delaunay, devorando 170 quilômetros por hora, transpunha o cume de uma cadeia de montanhas, a uma altura de 600 metros. Estávamos então em território de Santa Catarina e já avistávamos a ponte Hercílio Luz, que liga o continente à ilha em que se edificou a formosa Florianópolis.
Subitamente, o aparelho estremeceu no espaço, e o fogo impetuoso irrompeu na ‘nacelle’ do piloto.
(...)
“Nisto, o aparelho de Delaunay, ziguezagueando no ar, cruza sobre dois colmos. Vi aí, escondida sob matagais, com sua torre alva e pequenina, uma igreja isolada! A presença do templo sagrado como que me reanimou o espírito e, então, pensando em Deus com grande fé, recobrei o ânimo e tornei-me forte.
“Tive a certeza de que não morreria!”
(...)
O aparelho de Delaunay espatifou-se no chão, mas, devido à sua abnegação, todos nós nos salvamos.
“Foi um milagre da Santa!”