A conexão brasileira de Saint-Exupéry
Revista Entrelivros – edição 14 – Junho 2006
Ao fazer a rota entre Europa e Argentina, o piloto e autor de O Pequeno Príncipe, best-seller que completa 60 anos, costumava pousar em Florianópolis, onde ficaria conhecido como Zé Perri
Há 60 anos a literatura mundial via nascer um mito. Um príncipe menino, de cabelos dourados, usando cachecol; figura do espaço que vinha percorrendo vários planetas em sua jornada, até cair na Terra, em pleno deserto africano. Se por um lado a viagem tinha as características iniciáticas daquelas que fazem todos os heróis, por outro, era justamente num percurso contrário aos feitos bélicos que esse personagem iria se firmar, apregoando, com suas míticas asserções, uma espécie de verdade universal sobre amor e tolerância.
Isso não vinha sem conexão com a realidade: o pequeno herói nasceu em plena Segunda Guerra Mundial, da pena de um exilado voluntário para lá de entristecido com o estado de sua nação, a França, e da humanidade em geral. Essa é a gênese, pois, de O Pequeno Príncipe, cujo criador, o piloto escritor Antoine de Saint-Exupéry, também tange à lenda. Ambos, escritor e personagem, passariam à posteridade entrelaçados em histórias controvertidas, em mistérios desvendados e sempre recomeçados. Antoine de Saint-Exupéry nasceu de uma família aristocrática (1900) e perdeu aos cinco anos o pai. Escolheu a carreira de piloto, que o levou a pousar em várias partes do mundo, inclusive no Brasil.
Em 1929, no mesmo ano em que assinou contrato com a editora francesa Gallimard para a publicação de sete romances, foi nomeado chefe da Aeroposta Argentina, com a incumbência de criar a linha aérea da Patagônia. Na época, havia em Florianópolis uma base para vôos que vinham da Europa em direção à América do Sul. Assim, havia alojamento para pilotos franceses, que faziam ali escala. Entre eles, Saint-Exupéry. Não há fotografias dessa passagem, mas menção ao fato em seu livro Vôo noturno (1931), prefaciado por André Gide e vencedor do Prix Femina, à época, na França. Mas a passagem de Saint-Ex pelo litoral brasileiro não caiu no esquecimento.
Além de ter-se erigido um monumento em Florianópolis em homenagem aos pilotos franceses que por lá passaram, fatos curiosos marcaram a vinda do autor de O Pequeno Príncipe. A primeira é a existência de uma avenida que leva o nome da obra, na praia do Campeche. Também a localidade, por sua vez, parece ser uma aglutinação de palavras francesas, ou seja “camp de pêche”, que designaria a orla onde os pescadores puxavam as redes. De qualquer forma, o piloto, cujo nome era de difícil pronúncia entre os ilhéus, tornou-se ali, por suposta assonância, o “Zé Perri”. Hoje, uma pousada no Campeche o honra com tal designação. Numa travessa da avenida Pequeno Príncipe, logo ao lado, reside Getúlio Manoel Inácio, filho do pescador Manoel Rafael Inácio, o “seu Deca”, com quem Saint-Ex teria feito laços de amizade.
No ano 1929, o piloto-escritor começara a fazer escalas e estadas na ilha. Seu Deca o recebia para comer pirão e outros pratos locais, caçar marrecos e manter, como podiam, uma conversa. O resgate desse laço de Saint-Exupéry com Santa Catarina ficou por conta de Getúlio, que escreveu em 2003 um pequeno livro sobre essa história, Deca e Zé Perri, edição bilíngüe (francês-português). Por toda a infância e juventude, Getúlio ouviu os relatos do pai sobre Saint-Exupéry e o livro é fruto dessas histórias. Além dessa amizade, pesquisas realizadas na Universidade Federal de Santa Catarina averiguaram contatos do piloto com pessoas da elite local.
O livro de Getúlio foi lido pela sobrinha-neta e herdeira do escritor, Isabelle d’Agay. “Continuo surpresa com a lembrança que a passagem de meu tio-avô deixou na América do Sul e no Brasil em particular, mesmo depois de mais de 50 anos de seu desaparecimento”, diz a herdeira. “Fico muito orgulhosa e, assim como a família, grata a todos os brasileiros de Florianópolis por sua fidelidade à memória de Antoine de Saint-Exupéry, especialmente a Getúlio Inácio por seu testemunho.” Um filme foi realizado, Zé Perri no Campeche, sob direção do cineasta brasileiro Zeca Pires e seus alunos da Unisul (2000). Trata-se de um documentário sobre a presença do escritor francês na região, que foi premiado no Festival de Gramado como melhor documentário. Saint-Ex, como era chamado, casou-se com Consuelo, salvadorenha que conheceu em Buenos Aires, na época da Aeroposta Argentina.
Sofreu acidentes aéreos – acabaria a vida num avião –, um mais grave em 1938 (Guatemala). A imobilização o levou a escrever suas memórias de piloto e, em 1939, publicou Terra dos homens, vencendo o Grande Prêmio da Academia Francesa e ainda o National Book Award nos Estados Unidos. No Brasil, o livro foi traduzido por Rubem Braga. Saint-Exupéry perdeu amigos em vôos, amargou sérios problemas conjugais, desesperou-se pela humilhação de seu país durante a Segunda Guerra. Toda essa tristeza teria sido vivida, nos últimos anos, em Nova York, onde se exilara e criou o The Little Prince, ilustrando-o e vendo-o publicado em 1943. Com uma tiragem de 525 exemplares em inglês e 260 em francês, esses volumes hoje são negociados em torno de 12 mil euros (cerca de R$ 32 mil) cada um.
E o conto fantástico de Saint-Exupéry levaria três anos para atravessar o Atlântico, saindo em sua terra natal apenas postumamente em abril de 1946. O Pequeno Príncipe se tornou figura exemplar, a ser, antes de lida a obra, citada como se suas assertivas fossem verdadeiras lições de comportamento. Não havia, na década de 1940, quando foi escrito o livro, uma quantidade incalculável de livros de auto-ajuda e a religiosidade estava em crise. Lacunas suficientes para apropriações questionáveis. Assim, O Pequeno Príncipe, romance inicialmente concebido como um álbum ilustrado para o público infantil, tornou-se uma referência em todas as faixas etárias e inúmeras sociedades.
Contam-se hoje, aliás, 160 traduções nas mais diversas línguas – inclusive uma edição africana que o apresenta como um garoto negro de cabelos amarelos. É um dos livros mais lidos no mundo, estima-se que 80 milhões de exemplares tenham sido vendidos – o que dá uma média de 3.500 exemplares por dia nesses 63 anos (desde a edição americana). As frases da obra, pronunciadas pelo principezinho ou pelas personagens que o circundam, isoladas muitas vezes do contexto, tornaram-se slogans, citações banais ou clichês no mundo inteiro. Os herdeiros do escritor que o digam, pois tiveram necessidade de proibir que coisas do tipo “desenha-me um carneiro” fossem usadas aleatoriamente.
Aliás, Saint-Exupéry, que não teve filhos, deixou a seus sobrinhos-netos uma fortuna inestimável. Gabrielle, irmã mais nova do escritor, teve quatro filhos com Pierre d’Agay. Estes, por sua vez, têm treze descendentes. A primeira geração não precisou trabalhar, a segunda talvez não precise. A morte em fase de combate asseguraria à família d’Agay direitos autorais diferenciados: em vez dos 70 anos convencionais, podem somar mais 30, assegurados pela lei francesa, por Exupéry ter morrido pelo país. E ainda outros seis, pois contam-se os anos em que ele serviu durante a guerra.
Ou seja, até 2050 a família tem direito sobre suas obras. Mas o patrimônio conta ainda com os “produtos derivados” da obra O Pequeno Príncipe. Toda sorte de objetos com motivos das ilustrações da obra de Saint-Exupéry são vendidos em lojas especializadas na França e exportadas para o mundo inteiro; no total, 400 itens variando em xícaras de porcelana com pinturas do menino loiro, abajures, estojos, óculos, cadernos, blocos, bonequinhos etc. – que, à maneira de relíquias santas, são próprios ao domínio do mítico. Escritor conterrâneo de Saint-Exupéry, Philippe Delerm declarou à revista Lire: “Ele [Saint-Exupéry] não escreveu uma narrativa esperando ver dela nascerem irritantes produtos derivados, bonecos, relógios e papéis de carta que estão nas vitrines feito contra-sensos brilhantes e aflitivos”.
Delerm alerta, inclusive, que o tom da obra não é “desenha-me um carneiro”, nem “o essencial é invisível para os olhos”: “O tom de O Pequeno Príncipe não é história nem moral. É o restante, as frases que começam por e assim vivi sozinho”. Apesar de todas as controvérsias que possam suscitar, as afirmações de Delerm contêm algumas verdades. O problema da solidão parece, de fato, ter sido uma constante na vida do escritor e estaria refletido nas suas narrativas. A aura de depressão que o rondava foi descrita por mais de um amigo. O jornalista parisiense Pierre Lazareff contaria: “Quando terminou o romance [O Pequeno Príncipe], leu-me todo o final, chorando, como se estivesse pressentindo seu próprio fim, que se pareceria com o do Pequeno Príncipe”. De fato, Saint-Ex também cairia sem “fazer nenhum barulho”, como “cai uma árvore”.
Nas areias, também, mas do fundo do mar. As razões de sua morte permanecem ainda obscuras. Em 1944, ele aparentemente desviou da rota de vôo, cuja direção era Lyon. Mais perto do Mediterrâneo, supunha-se que tivesse tentado sobrevoar a casa materna (hipótese aventada pelo biógrafo Paul Webster). Como saber? O mais provável, porém, é que seu avião tenha sido abatido pelos pilotos alemães. Somente em 1998, um pescador marselhês puxou em sua rede um bracelete com o nome de Antoine De Saint-Exupéry gravado. Era sua pulseira de fato e as buscas pelos destroços do avião começariam. Em outubro de 2003 foram achados os primeiros destroços no litoral de Marselha e, em abril de 2004, o governo francês confirmou que se tratava mesmo do avião pilotado por Exupéry 60 anos antes.
Tudo o que se desvendou a respeito da curta existência de Antoine de Saint-Exupéry (44 anos) foi aos poucos. A viúva Consuelo, com quem a família D’Agay nunca teve relações das mais amigáveis, foi por muito tempo considerada uma personalidade tirânica. Ao morrer, em 1979, seu testamento estarreceu a todos legando a parte de sua herança a José Martinez Fructuoso, que fora seu secretário particular. Este, por sua vez, decidiu abrir os baús de Saint-Ex que Consuelo recebera por ocasião de seu desaparecimento, nos quais, no entanto, nunca mexera. Deles saíram muitos objetos do escritor, sua máscara de oxigênio, cartas escritas etc. E, a maior surpresa: as aquarelas originais do Pequeno Príncipe, que teriam sido usadas na primeira edição americana.
Só em 1997, uma comparação de tais ilustrações com aquelas que se vêem nos exemplares do livro espalhados pelo mundo mostrou que não são as mesmas. Em 1945, quando da preparação da edição francesa, os desenhos originais haviam desaparecido e um artista foi recrutado para, calcando-se nas ilustrações da edição americana, refazê-las. Nessa reprodução, houve algumas distorções, principalmente de cores. Com as aquarelas originais em mãos, a editora francesa Gallimard publicou uma nova edição de O Pequeno Príncipe em 1999. Por fim, entre tantos mistérios em torno da “arqueologia” de O Pequeno Príncipe, o que permanecerá, sem dúvida, é a obra em si. Possivelmente os objetos derivados e a consagração da obra ainda vão fazer a fortuna de seus herdeiros diretos ou indiretos e gerar muitos comentários.
Caberá, não obstante, à crítica, o papel de retomar e atualizar seus valores literários e não rechaçar o autor como fizeram os surrealistas. Saint-Exupéry escreveu sobre tolerância e compreensão humana num contexto em que sua crise pessoal estava, decerto, inextricavelmente ligada à situação mundial, na qual destruição e ódio se propagavam de forma explícita. Uma obra cujo estranho herói é mistura de criança e anjo; uma obra dedicada a um escritor judeu (Léon Werth) em tempos de holocausto. Um discurso mítico em que surgem uma raposa, uma rosa, um carneiro, mas também um alcoólatra, um mercenário e, sobretudo, serpentes venenosas portadoras da morte.
E a morte. Tudo permeado de inserções sobre a solidão e o medo do nada, do vazio do mundo sem esperança. Longe de ser uma obra infantil, O Pequeno Príncipe mais se assemelha a um idílio escrito por um homem dilacerado e inquieto; personagem-narrador e menino loiro dialogam sobre as coisas ainda significantes de uma terra esboroada, da qual ambos partiriam com tristeza e rapidamente. A terra dos homens.