Aventura sobre o Atlântico
Saga de pilotos franceses no Brasil foi um dos grandes momentos da aviação
por MILU LEITE publicado na Revista Problemas Brasileiros, do SESCSP
Os relatos de conquista são sempre épicos. Incluem uma quantidade surpreendente de perigos, mortes e muitas, muitas vitórias. Foi assim que ocorreu em terra, mar e ar. É assim que ainda acontece no espaço sideral. No entanto, os mais belos deles, e talvez o superlativo se deva à carga de romantismo que inspiram as estrelas, envolvem aviões quase feitos de papel que, pilotados por jovens audaciosos, deixavam riscos de fumaça no céu.
O fato de um dos primeiros homens a fazer isso ter sido Santos Dumont, em Paris, em 1906, une historicamente dois países, França e Brasil, nas principais conquistas aéreas, que aconteceram a partir de então ora lá, ora aqui. Afinal, não muito tempo depois, pilotos franceses da Aéropostale desbravariam o espaço aéreo brasileiro para formar, entre os anos 1920 e 1930, a Aeroposta Argentina, a primeira linha de correio aéreo da América do Sul, pioneira também ao ligar comercialmente os continentes europeu e sul-americano. E que estivesse entre eles o francês Antoine de Saint-Exupéry, autor de O Pequeno Príncipe, um dos romances mais conhecidos do mundo, torna ainda mais admiráveis e apaixonantes as absurdas aventuras registradas por esses pilotos, rapazinhos com pouco mais de 20 anos de idade, metidos em casacos e bonés de couro.
Antes, porém, de narrar os fatos dessa história, importa dizer que eles aguardaram muito tempo até receber o merecido reconhecimento em terras brasileiras. As comemorações do Ano da França no Brasil, em 2009, serviram de palco para que a memória desse momento específico da história de ambos os países fosse finalmente resgatada e difundida em exposições ocorridas em várias capitais do país. Pipocaram matérias em revistas, jornais e redes de televisão. Falou-se muito de Saint-Exupéry. Mas pouco se comentou o nome de outros que, como ele, arriscaram-se nos céus dos continentes europeu, africano e sul-americano a serviço da Aéropostale.
No bojo das comemorações de 2009, a cidade de Florianópolis, por sua vez, ganhou destaque internacional e só então a população local ficou sabendo que a ilha abriga o mais completo conjunto arquitetônico da Aéropostale na América do Sul. É na praia do Campeche que se encontram o campo de pouso, o casarão e o hangar que entre 1927 e 1931 receberam os pilotos que viriam a se tornar grandes nomes da aviação mundial: Jean Mermoz, Henri Guillaumet, Paul Vachet, Marcel Reine e Exupéry. Necessário dizer então que, passados quase 80 anos, algo singular certamente ocorreu para que tudo isso chegasse a conhecimento público. Tal singularidade tem nome e sobrenome e está personificada na figura da brasileira Mônica Cristina Corrêa, doutora em língua e literatura francesa pela Universidade de São Paulo. “São histórias gloriosas, uma empreitada de malucos, também gloriosos”, resume.
Foi Mônica quem, em 2007, ao se deparar casualmente com a lenda de um certo Zeperri, aviador e escritor francês que pousava na praia do Campeche para visitar um pescador conhecido como “seu” Deca, arregaçou as mangas e resolveu ir fundo na história. Foi ela também que, depois de muita pesquisa, contatou o sobrinho-neto de Exupéry, Marcel d’Agay, para juntar uma ponta do caso à outra.
Desde então, as relações se estreitaram e ganharam um colorido de afeto, estimulando trocas e iniciativas de governos e entidades de ambos os países. Foi preciso tudo isso para que, finalmente, a lenda de Zeperri ganhasse reconhecimento oficial e colocasse o nome de Exupéry definitivamente entre os de outros aviadores que se apaixonaram pela ilha, elevando a uma categoria de distinção placas com nomes de ruas e estabelecimentos comerciais em homenagem a ele que há muitos anos fazem parte da paisagem da praia do Campeche.
Memória
É em decorrência do novo status dado a esse período da história dos ases do céu que a população de Florianópolis aguarda agora a criação do Memorial de Pilotos e Pescadores e a posterior montagem permanente da mostra “Mémoire d’Aéropostale” (doada pela entidade francesa), na Avenida Pequeno Príncipe, onde a própria companhia funcionou, enquanto acompanha as notícias sobre o documentário De Exupéry a Zeperri, projetos tocados por Mônica em meio a muitas entrevistas e algumas viagens à Europa.
Paralelamente, franceses e brasileiros aguardam aqui e lá que o registro da passagem dos aviadores pelo sul da ilha de Santa Catarina se torne patrimônio histórico universal com o tombamento da rota intercontinental, após a visita do representante da comissão superior dos monumentos históricos e presidente do Colégio de Expertise do Patrimônio Aeronáutico da França, Max Armanet, em dezembro último.
“Ao mesmo tempo em que aguardamos a concretização do projeto do Memorial [no prédio onde funcionou o escritório da Aéropostale mora hoje uma senhora e o governo busca solucionar o problema], tocamos adiante o documentário. Já captamos imagens digitalmente em algumas cidades francesas e entrevistamos parentes de Exupéry. Agora, estamos terminando as entrevistas com pessoas da ilha que têm casos a contar ou porque estiveram presentes ou porque os ouviram de outros”, diz Mônica. “Eu e a Branca [Branca Regina Rosa, da produtora We Do] queremos trabalhar a oralidade e o que resta dessa memória”, completa. O documentário, com roteiro de Delmar Gularte, terá cerca de 50 minutos e deverá ser exibido pela TV Sesc/SP, entre outras emissoras.
Contudo, se no Brasil se busca montar o quebra-cabeça por meio de depoimentos ainda não registrados, na França a quantidade de literatura disponível sobre esses pilotos é enorme. Vários deles escreveram suas memórias. O próprio Exupéry relata, de forma direta ou indireta, nas obras Voo Noturno, Terra dos Homens e Correio Sul, sua experiência e a dos companheiros.
Em 2006, a neta de uma figura central na história da aviação mundial, Guillemette de Bure, lançou uma obra fundamental sobre a saga de seu avô, Marcel Bouilloux-Lafont: Les Secrets de L’Aéropostale – Les Années Bouilloux-Lafont 1926-1944, que revela segredos de alcova com o intuito de estabelecer a “verdade histórica”, segundo palavras da autora.
Guillemette nasceu em Santiago do Chile, mas passou parte da infância no Rio de Janeiro com os pais e conheceu bem o avô, à época um empresário falido. “Lembro-me muito bem dele e da profunda tristeza que emanava de sua pessoa. Parecia acabado. Sempre me perguntei a razão. Somente depois de ter explorado sua vida e sua obra, consigo compreender melhor o desespero daquele homem, arruinado quando havia tentado fazer tanto por seu país”, conta ela em entrevista feita por e-mail.
E que injustiça terá sido cometida contra o homem que construiu “a mais importante linha aérea dos anos 1930”, como recorda sua neta?
O começo
Em meados de 1926, enquanto pilotos como Mermoz e Vachet arriscavam a pele em voos entre a Europa e a África a serviço da empresa aérea Latécoère, o homem que a comandava, Pierre-Georges Latécoère, farejava a desgraça que iria se abater sobre o mundo ocidental poucos anos depois e, por essa razão, contatava um empresário francês que vivia no Brasil e já se fazia notar graças a empreendimentos em áreas diversas, entre elas linhas de trem, portos e o Banco Federal Brasileiro.
Foi assim que Latécoère vendeu 93% das ações a Lafont e ambos se tornaram sócios na Aéropostale, com a perspectiva de subvenções do governo francês. Por razões evidentes e outras ainda obscuras, a França suspendeu as subvenções, deixando Lafont em meio à crise mundial causada pelo crash da Bolsa Americana em 1929. Lafont persistiu até 1931, quando a Aéropostale finalmente quebrou. Pierre-Georges Latécoère tornou-se um próspero fabricante de aviões. Em 1933, a Aéropostale, falida, foi integrada a duas outras companhias e tornou-se a Air France. Os pilotos foram reempregados. Os acontecimentos históricos que se sucederam, entre eles a 2ª Guerra Mundial, selaram definitivamente o destino desses dois homens, condenando um ao fracasso e reservando ao outro o sucesso.
Nesse meio-tempo, contudo, a aviação mundial experimentou grandes saltos de desenvolvimento, e a coragem e a audácia dos pilotos da Aéropostale impulsionaram muitos desses avanços.
Mermoz, por exemplo, lançava-se a distâncias cada vez maiores. São incontáveis os relatos de suas peripécias. Num dos vários voos feitos para ampliar a linha até Dacar, em 1927, acabou caindo no deserto depois que seu avião foi alvejado. Àquela época, esse era o maior temor dos pilotos, porque eram capturados pelos mouros dissidentes e feitos reféns. Só eram soltos com o pagamento de resgate, em geral quantias astronômicas, somadas ainda ao envio de armas. Aventuras assim eram empreendidas por vários pilotos (incluindo Saint-Exupéry). Elas, afinal, lhes permitiam refazer cálculos sobre as aeronaves, detectar problemas para fazer melhorias técnicas, analisar de uma perspectiva diferente os planos de voo. Tudo ganhava sentido e se transformava em avanço.
Ao mesmo tempo, havia a correspondência, que ia e vinha. Em 1920, a Latécoère transportou 200 mil cartas. Dez anos depois, quando o serviço já havia se estendido à África e à América do Sul, esse número chegava a 30 milhões. “A história da companhia Latécoère/Aéropostale é a de um estrondoso sucesso, ao menos no curto prazo. Em 1930, ela já era a linha mais longa do mundo e, com seus 72 aviões, a maior frota comercial da Europa”, afirma Stacy de la Bruyère em seu livro Saint-Exupéry: Une Vie à Contre-Courant.
Outro nome a brilhar na constelação da Latécoère/Aéropostale é o de Henri Guillaumet. Em 1926 é ele quem assegurará o fluxo do correio na linha Toulouse-Casablanca-Dacar. Anos mais tarde esses mesmos pilotos serão os principais responsáveis pelo transporte de correspondência nas linhas da companhia francesa no continente sul-americano, ao lado de Exupéry, Vachet e Reine.
A Aéropostale sul-americana
Em 1927, atendendo a determinação de Marcel Bouilloux-Lafont, presidente da Compagnie Générale Aéropostale, Paul Vachet voou para vários países da América do Sul (Brasil, Uruguai, Argentina, Paraguai, Chile e Venezuela), com a missão de estabelecer a linha França-África-Brasil-Uruguai-Argentina-Chile, da Aeroposta Argentina. O voo entre pontos tão distantes implicava, contudo, muitas paradas para reabastecimento e reparos mecânicos, uma vez que os aviões eram pequenos e as panes muito comuns. Por essa razão, foram criadas escalas em diversos pontos da costa brasileira. Tais escalas serviam também como centros de distribuição dos malotes de correspondência. As principais delas eram Natal, Rio de Janeiro, Santos, Florianópolis, Pelotas e Porto Alegre. Registros obtidos por Mônica Corrêa na França mostram cerca de 70 pousos feitos pelos franceses na ilha de Santa Catarina entre os anos 1927 e 1931.
A chegada de Vachet a Florianópolis é um dos pontos altos das relações que se estabeleceram entre os pescadores e os aviadores franceses. É o próprio Vachet quem conta em suas memórias como se deu a compra do terreno que passaria a abrigar as estruturas da Aéropostale na praia do Campeche. De acordo com ele, a área de 324 mil metros quadrados pertencia a várias famílias que não tinham qualquer tipo de registro dos imóveis. Para complicar ainda mais a situação, parte dos donos tinham união estável com as esposas mas não eram legalmente casados, o que impedia que as terras fossem vendidas. Para resolver a situação, Vachet e sua mulher promoveram os casamentos necessários e se tornaram padrinhos de vários casais, estabelecendo relações de amizade com muitos deles no decorrer dos anos.
Em meados de 1930, Mermoz foi encarregado de fazer a primeira travessia do Atlântico Sul, partindo da África para o Brasil. Até então, os malotes do correio chegavam de navio a Natal e eram depois distribuídos nos aviões. Ele partiu de Saint-Louis, no Senegal, e pousou com tranquilidade em Natal a bordo de um Laté transformado em hidroavião. A volta, porém, depois de sucessivos adiamentos, não acabou tão bem, com um pouso forçado no mar, a quase 900 quilômetros da costa africana (foi socorrido por um barco, contatado pelo rádio).
Em carta endereçada à mãe, ele comenta a estada forçada em Natal por causa dos adiamentos: “Arrasto minha tristeza e minha inatividade pelas ruas sujas e mórbidas de Natal […] e os dias e horas transcorrem intermináveis […] Não há hotel […] Sim, um único, ignóbil […] Migramos para uma casa não mobiliada mas limpa, o quanto pode sê-lo uma casa brasileira”. Mas Mermoz também sabia apreciar a paisagem brasileira e fala de modo minucioso dos perigos das linhas que fazia ao lado de outros aviadores: “O percurso é duro. Ventos irregulares, tempestades frequentes e calor imenso desde Porto Alegre. A partir do golfo de Santa Catarina, ponto inevitável de perturbações atmosféricas, é floresta virgem até Natal. Em caso de pane, só nos restam pequenas praias para pousar. A etapa Rio-Santos é a mais difícil. […] São duas horas magníficas e angustiantes a passar. É maravilhosamente bonito, mas uma pane seria desastrosa”, conta ele.
Em 1929, um ano antes do feito de Mermoz, o jovem Saint-Exupéry foi destacado para chefiar a Aeroposta Argentina e abrir linhas para a Patagônia, depois de três anos de serviços prestados à companhia na França e na África. Nascido em família rica, o escritor impressionou a todos por sua erudição e solidariedade.
Mermoz voltou para a França quatro meses depois da chegada de Saint-Exupéry e corre a lenda de que teria afirmado que distribuiu aos amigos as chaves de seu reino: Victor Étienne ficou com o Brasil, Reine com o Paraguai, Guillaumet com a linha Santiago-Buenos Aires e Saint-Exupéry com a Patagônia.
Além de abrir a linha da Patagônia, Exupéry tinha de supervisionar a exploração argentina, cuidar da administração de pessoal, providenciar equipamentos e controlar de perto os aeródromos. Por essa razão, voava por todos os lados na América do Sul.
Florianópolis, entretanto, teria despertado no escritor um sentimento especial, segundo dizia “seu” Deca, o pescador de quem se tornou amigo. De acordo com o filho do pescador, Getúlio Manuel Araújo, seu pai lhe contou que Exupéry algumas vezes vinha a passeio e, nessas ocasiões, não dispensava o peixe nem o biju.
Era comum que tanto Exupéry quanto outros pilotos pousassem na ilha à noite. Sempre que isso ocorria, eram acesos lampiões para iluminar o aeródromo. A prática acabou dando nome à elevação que fica em um dos lados do campo, hoje conhecida como morro do Lampião.
A saga da Aéropostale está registrada na exposição que brevemente chegará ao Campeche e que já passou por cidades como Rio de Janeiro, Toulouse, Barcelona e Casablanca.
Desde o ano retrasado, porém, parte dessa história já pode ser vista no pequeno espaço reservado pela Pousada Zeperri para contá-la aos hóspedes e curiosos que passam por Florianópolis.
A exuberância dessa saga, porém, exige muito mais e só encontrará um suporte à sua altura com a concretização do projeto do Memorial de Pilotos e Pescadores. Aí sim estará se imprimindo definitivamente na história da aviação um recorte no tempo marcado, sobretudo, pelas relações de amizade entre dois povos.
Um piloto ilustre
Antoine de Saint-Exupéry nasceu em Lyon em 1900. Passou a integrar a equipe da Latécoère em 1926. Era considerado um dos pilotos mais seguros da linha, segundo Didier Daurat, diretor de operações da companhia.
Foi piloto da linha Toulouse-Casablanca e, depois, da Casablanca-Dacar. Fiel aos companheiros, era frequentemente solicitado em missões de resgate ou socorro. Sua facilidade para aprender línguas, aliada ao temperamento equilibrado, o conduziu a missões diplomáticas entre os mouros dissidentes do deserto do Marrocos. Foi nesse período que começou a escrever Correio Sul, lançado em 1929 com boa acolhida da crítica.
Em setembro de 1929 foi designado diretor da Aeroposta Argentina e passou a viver em Buenos Aires, cidade que dizia não apreciar. Nessa fase, escreveu Voo Noturno.
Em 1934, Saint-Exupéry, após a quebra da Aéropostale, foi contratado pelo setor de propaganda da Air France e fez inúmeras viagens como conferencista da empresa. Mesmo então continuou a voar por prazer e sofreu alguns acidentes.
Em 1939, publicou Terra dos Homens, premiado na França e nos Estados Unidos. A obra narra as aventuras de Guillaumet e Mermoz e lança luz sobre os feitos da Aéropostale. Um ano depois, Exupéry tornou-se piloto de guerra. Quando a França foi ocupada pelos nazistas, exilou-se nos Estados Unidos, onde escreveu O Pequeno Príncipe, mas a partir de 1943, baseado no norte africano, voltou a voar sobre o continente europeu.
O escritor tinha 44 anos quando sua aeronave desapareceu no mar Mediterrâneo durante uma viagem de inspeção e reconhecimento. Seu corpo nunca foi encontrado. Um bracelete com seu nome foi achado ao largo de Marselha por um pescador, meio século depois.
Em 2002, os destroços do P-38 Lightning que ele pilotava foram encontrados e identificados. No ano passado, um alemão bastante idoso apresentou-se à imprensa, dizendo ser a pessoa que tinha abatido o avião de Exupéry.