Imprensa
16/10/2011

O acaso da história e a história do acaso

A passagem dos pilotos da antiga Aéropostale pelo bairro Campeche

por Mônica Cristina Corrêa

“Por maior que seja nossa insistência em fazer falar o passado, somente encontraremos em nossas bibliotecas, museus ou cinematecas as obras que o tempo não fez, ou não conseguiu fazer desaparecer. Mais do que nunca, percebemos que a cultura é precisamente o que permanece quando todo o resto foi esquecido.” Jean-Philippe de Tonnac

A reflexão do jornalista francês Jean-Philippe de Tonnac, referindo-se às obras escritas ou audiovisuais estende-se, sem dúvida, a todo patrimônio material da cultura e da história da humanidade. Há, sem dúvida, um trabalho misterioso do acaso naquilo que se preserva. No entanto, ao por as mãos sobre o legado material ou imaterial que esse mesmo acaso deixa, cada homem assume, de algum modo, a responsabilidade sobre o porvir e a preservação da memória.

Ora, a história não é matéria exclusivamente documental, mas fruto da interpretação do passado pelos homens do presente. É uma aglutinação do imaginário e do saber adquirido, da percepção segundo conceitos vigentes; jamais um conhecimento estático. Não se faz história hoje como há um século: há nessa ciência dinamismo, adaptação e inovação.

Assim, a própria concepção de preservação é variável. Hoje, o conceito de memória se amplia, abrange a oralidade e a faz cruzar com documentos. Nos monumentos, cada vez mais construções antigas se revestem de alta tecnologia, propiciando aos visitantes interação entre realidade circundante e imaginário.

A fim de tirar dos escombros uma página da história de Florianópolis, partimos dessa reflexão. Trata-se de retomar a passagem dos pilotos da antiga companhia de correio aéreo francesa, a Aéropostale (anos 1920), no Campeche. O bairro abriga — e por tarefa do acaso — o antigo casarão onde pilotos e mecânicos faziam refeições e dormiam entre uma viagem e outra. A casa, um tanto desgastada e tendo servido a múltiplos usos, é um pronunciamento do passado pouco nítido aos passantes. Mas a memória popular, distraidamente, como é próprio do povo em seu viver singelo, intriga ao designá-la como “popote”, palavra francesa que significa “comida” em linguagem militar. Certamente, à força de ouvir tantas vezes tal  alusão por parte dos pilotos que ali iam fazer suas refeições, os pescadores de outrora atribuíram à casa o nome que significava apenas a “boia”. E a esse nome francês soma-se a presença fantasmática de homens destemidos dos primórdios da aviação comercial. Entre eles, estaria Antoine de Saint-Exupéry, cujo nome levou à corruptela local “Zeperri”. Um abrasileiramento ou pronúncia adaptada deixando no ar, de fato, uma presença ilustre que tiraria do prosaico — e definitivamente — a história do Campeche.

São, pois, os relatos esparsos, as citações breves que se inserem no contexto das narrativas sobre a Aéropostale e propiciam o entendimento da mítica passagem desse piloto de talento literário, autor do Pequeno Príncipe. O caprichoso acaso o fez passar pelo Campeche. Ao tocar na herança desse acaso, deve-se observar a interseção entre o imaginário e o provável descrito pelos documentos, pois estão inextricavelmente ligados. Não se constrói a história do homem sem que a sociedade seja considerada nesses seus dois aspectos. A biografia de Saint-Exupéry tange à lenda e seus livros são tão filosóficos e misteriosos quanto sua própria existência.

A parte relativa à “materialidade” dos vestígios da Aéropostale no Campeche é a recuperação da dita “popote”. Longe de pretender-se algo estagnado, o restauro providenciado pela Prefeitura de Florianópolis (Fundação Franklin Cascaes) é orientado para a interação do passado com o futuro da cidade. A aviação é tema que assegura isso por si mesmo: um legado que não deixou de ser aperfeiçoado e, a cada dia, faz parte do cotidiano de mais pessoas. O Memorial Pilotos e Pescadores a ser instalado no antigo casarão não será mera homenagem aos homens que se foram; mas o eco de um diálogo entre franceses e brasileiros capaz de modificar o presente de cada visitante. Da longínqua amizade entre pescadores ilhéus e pilotos franceses, arauto do cosmopolitismo atual de Florianópolis, do sotaque miscigenado que gerou o nome “Zeperri” e apelidou a casa de “popote”, há de reconstruir-se a memória do Campeche. Às futuras gerações caberá burilar esse passado em função de suas necessidades e redefinir as cores do cambiante imaginário dos homens.

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