Cidadela (1948)
Saint-Exupéry designava Cidadela como sua obra póstuma. Esboçado desde 1936, o texto foi elaborado paralelamente aos últimos livros publicados quando o autor era vivo: Terra do homens, Piloto de guerra, O Pequeno Príncipe. Reunidas numa valise, as folhas escritas em vários anos formam uma antologia de reflexões sobre a condição do homem e sua ligação com Deus.
É difícil imaginar a forma final desse texto que Saint-Exupéry pretendia corrigir, o que significava, para ele, reescrevê-lo. As páginas que nos chegaram representam, por si mesmas, a metade de sua obra. Publicado pela primeira vez em 1948, o manuscrito foi estruturado em 219 capítulos, cuja ordem não é talvez a que o autor tivesse privilegiado, se tivesse terminado o trabalho. Essa organização dos capítulos tenta delinear uma visão coerente da mensagem de Saint-Exupéry.
A obra está escrita em primeira pessoa, e a crer-se no esboço lido por Antoine de Saint-Exupéry desde 1936 a Pierre Drieu La Rochelle, trata-se de um discurso de um chefe árabe (berbere), cujo pai do “sangue das águias” foi assassinado. Sua sabedoria lhe vem dos ensinamentos de seu pai e das experiências excepcionais ou ordinárias por ele vividas, às quais interroga para compreender o funcionamento dos indivíduos, do mundo e das sociedades.
Três níveis de leitura da obra podem ser distinguidos. Primeiramente, um nível de leitura imediata, que joga com o exotismo e o aparente deslocamento de uma fábula, evocando os palácios das Mil e uma noites. Depois, um nível de leitura moral e social, reflexão de ordem política sobre o chefe e a autoridade. Esse aspecto talvez corresponda mais a um projeto anterior cujo título provisório era O xeique e que foi publicado no número 7 (julho de 1948) da revista A Távola Redonda, com o título de “Senhor berbere”. Enfim, uma leitura espiritual que apela à vigilância do Espírito.
Resumo
Com Cidadela, Saint-Exupéry elabora uma obra profunda, de dimensão filosófica. Essa obra, que ficou inacabada, reúne seus pensamentos sobre temas essenciais à elevação do Homem e do Espírito: a condição humana, o sentido da vida e das coisas, o elo entre os homens e com Deus.
Saint-Exupéry distingue dois universos: o espaço animal, incoerente e perecível, ao qual pertencemos por nossa carne; e o de Deus, para o qual nos conduz o espírito. A vida dos homens é um esforço contínuo para organizar a matéria bruta, fazer a glebaadquirir um sentido que ligue as coisas e lhes ofereça um grão de eternidade, à maneira dos tijolos que se tornam catedral. A grandeza se mede pela capacidade de criar sentido e superar assim a condição mortal pela busca de um Deus, chave capaz de reunir numa significação única tudo o que existe. Ele se inspira em sua experiência concreta e meditativa para nutrir uma reflexão sobre o papel do chefe, a qualidade de uma civilização, o fervor do trabalho, a colaboração na criação.
Sua escrita poética mistura vocabulários religiosos, moralistas, melancólicos e arroubos líricos. Narrador inato, ele constrói uma obra literária em que o pensamento filosófico é ilustrado com parábolas: “forjar o homem”, “o guardião de meus rebanhos”, “o templo que existe por cada uma das pedras”, “o sentido do tesouro, que é, a princípio, invisível”. Cidadela reúne os temas maiores da mensagem humanista e espiritual de Saint-Exupéry: “Dar um sentido ao homem” e “a cidadela se constrói no coração do homem”. Sabe-se por Pierre Chevrier (pseudônimo de Nelly de Vogüé), que Saint-Exupéry ambicionava deixar aos homens uma “bíblia” que fosse também um “poema”. É a razão pela qual se pode falar em “canto lírico de inspiração bíblica”.
Cidadela – Citações
“Os ritos são no tempo o que a morada é no espaço”.
“Sigo a vida e organizo”.
“Ao homem só conta o sentido das coisas”.
“Eu te digo: não tens o direito de evitar um esforço senão em nome de um outro esforço, pois precisas crescer”.
“O homem é assim feito: só se contenta do que forma”.
“Tu deves à tua criatura”.
“A amizade, eu a reconheço naquilo em que não pode ser desapontada, e eu reconheço o verdadeiro amor naquilo em que não pode ser lesado”.
“Somente as crianças plantam um pau na areia, tornam-no rainha e sentem o amor”.
“Criar é criar o ser e toda criação é inexprimível”.
“Tem razão quem aceita a destruição de sua urna de carne para salvar o depósito que ali está encerrado”.
“Quando te doas, recebes mais do que doas. Pois não eras nada e evoluis”.
“O essencial não é as coisas, mas o sentido das coisas”.
“Sei que apenas o espírito governa os homens e os governa absolutamente”.
“A felicidade te foi concedida como recompensa, quando criaste”.
“E se te retiro das vagas do mar, amar-te-ei mais, pois sou responsável por tua vida”.
“O tempo te constrói raízes”.
“Eles não encontram o sentido das coisas porque não há nada a encontrar, mas a criar”.
“O Ser não é acessível à razão. Seu sentido é o de ser e o de crescer. Torna-se razão no nível dos atos”.
“Compreendi, Senhor, que o espírito domina a inteligência. Pois a inteligência examina os materiais, mas apenas o espírito vê o navio”.
“Tu és nó de relações e nada mais. E tu existes graças a teus laços. Teus laços existem graças a ti. O templo existe graças a cada uma de suas pedras”.
”Falar-te-ei, então, do sentido do tesouro. O qual é primeiramente invisível, não pertencendo jamais à essência da matéria”.
“Apenas aqueles receberam alguma recompensa das gazelas que os cativaram”.
“O instinto essencial é o instinto da permanência”.
“As flores valem para os olhos. Mas as mais belas são aquelas com que ornei o mar para honrar os mortos. E jamais ninguém as contemplará”.
“A dor do amor, é o amor”.
“Não te aumentas senão daquilo que transformas, pois és semente”.
“Pois não vivo das coisas, mas do sentido das coisas”.
Bibliografia
Antoine de Saint-Exupéry : Citadelle,Gallimard, 1948
Saint-Exupéry : Œuvres complètes II, Bibliothèque de la Pléiade, Gallimard, 1999
Nelly Ambert : Langage, écriture et action dans Citadelle, dans Etudes littéraires, Université de Laval, 2000
Albrecht Fabri : Versuch über Citadelle, dans Merkur 5, juillet 1951
François Mattenet : Une poétique humaniste dans Citadelle, thèse, 1996
Olivier Odaert : Réflexion et protocole dans Citadelle, dans Tome LIX de l’Université catholique de Louvain
Olivier Odaert : Clef de l’étendue, protocole de lecture dansCitadelle, dans Les lettres romanes Tome LIX, 2006
Georges Pelissier : Introduction à la lecture de Citadelle, Synthèses, 1966
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