Saint-Exupéry: Crítica

Imagens entremeadas: o diabólico e o paradisíaco

Sobre Piloto de Guerra, de Saint-Exupéry

Este texto foi publicado no site “Le Cercles des Lecteurs de Saint-Exupéry”, página organizada pela especialista Delphine Lacroix

Em 1942, o escritor francês Antoine de Saint-Exupéry, autor do clássico O Pequeno Príncipe (1943), publica Piloto de Guerra, inicialmente sob o título de Flight to Arras, o qual reúne o relato de arriscadas missões de reconhecimento quando a França foi invadida pelos nazistas. Os dois livros foram publicados inicialmente em solo estrangeiro, durante o tempo em que o autor ficou exilado nos Estados Unidos da América.
Em plena guerra, é reconhecido como o livro mais vendido no ano, influenciando extremamente a opinião pública norte-americana, o que pode ser comprovado pela afirmação do redator-chefe do jornal The Atlantic do período: “Piloto de Guerra? A melhor resposta que as democracias encontraram até o momento ao Mein Kampf.” (EXUPÉRY, 1994, p.38) .

Porém, essa receptividade não é unânime, pois, segundo Paul Webster (1994, p.223), além do jornal Je suis partout, “outros jornais antissemitas uniram-se à condenação e os alemães anularam a autorização de venda em 11 de janeiro de 1943. Em poucas horas todos os exemplares foram retirados das livrarias.” Suas publicações também foram proibidas em seu próprio país pelo governo de Vichy e, na Argélia, por Charles de Gaulle, o que justifica a existência de publicações clandestinas, conforme notas em Oeuvres Complètes II (EXUPÉRY, 1999, p.1320).

Além das descrições dos combates, seu texto é marcado pelas reminiscências de infância, bem como pelas reflexões filosóficas sobre a condição humana. Desse modo, nosso objetivo é investigar quais são as imagens bélicas exploradas pelo autor nesse livro, assinaladas não só pela questão exterior da Guerra, mas por seus conflitos interiores, pois, como ele mesmo afirma, seu livro foi escrito em um momento de “desordem interior” (EXUPÉRY, 1982, p.227).

Uma característica fortemente presente na poética de Saint-Exupéry é a profusão de metáforas, o que justifica a afirmação de Laurent de Galembert: “É a imagem que faz o pensamento progredir em Saint-Exupéry.” (2006, p.225). Desse modo, para a realização deste trabalho, apoiamo-nos nas reflexões teóricas acerca da imagem do renomado crítico canadense Herman Northrop Frye, as quais estão presentes em um de seus mais famosos livros: Anatomia da Crítica (1973).
Assim, ele organiza três categorias de imagens: as apocalípticas, as demoníacas e as analógicas. Interessa-nos as duas primeiras, que se relacionam, respectivamente, a céu e inferno, deuses e demônios, a dois mundos opostos que representam o desejável e o indesejável pelo homem. As imagens apocalípticas são a representação do desejo humano, do transcendente, do que pode ser considerado elevado, e por isso são associadas ao modo mítico. Já as imagens demoníacas são a representação do que o desejo humano rejeita, do que é considerado baixo, inferior; daí serem associadas ao modo irônico.

De fato, Piloto de Guerra apresenta imagens que podem ser associadas a essas classificações antitéticas, já que o autor oscila entre o mundo real da guerra e o mundo ideal, simbolizado, sobretudo, pelas lembranças da infância.

Imagens demoníacas: o vermelho caótico da guerra.

As imagens demoníacas evocam o mundo do pesadelo, do que seria um inferno existencial, ou seja, aquilo que não é desejado pelo ser humano. Em Piloto de Guerra, observamos o predomínio dessa categoria de imagem de dor e sofrimento, gerada pelo universo demoníaco da guerra. O crítico canadense associa a esse mundo algumas imagens, tais como a tortura, as ruínas, o cativeiro, a dor e principalmente a confusão. E é justamente em torno dessa ideia de caos e desordem que o texto de Saint-Exupéry parece estar construído.

Já nas primeiras páginas do livro, o narrador, o capitão Exupéry, relata que muitos camponeses deixam suas casas e fogem para o sul da França: “É um verão que não funciona. Um verão em pane… Eu vi debulhadoras abandonadas. Máquinas de ceifar abandonadas. Nas valas das estradas, carros quebrados abandonados. Aldeias abandonadas.” (EXUPÉRY, 1999, p.116) .

Nesse trecho, percebemos que o autor recorre à figura de linguagem epístrofe, já que há a repetição da palavra “abandonada” no final de cada oração. E essa reafirmação parece ser proposital, para enfatizar o abandono que a guerra provoca, em contraposição ao período favorável à colheita.

E ainda nesse mesmo parágrafo, o narrador, valendo-se de uma metáfora, diz que uma imagem absurda se apodera dele, o que nos faz retomar a ideia de um verão fracassado:

A (imagem) dos relógios desajustados. De todos os relógios desajustados. Relógios das igrejas das aldeias. Relógios das estações. Relógios das chaminés das casas vazias. E, nesta vitrine de relojoeiro fugitivo, este ossuário de relógios mortos. A guerra… não se voltará a dar corda nos relógios. […] E morre o verão. (p.116).

Nesse trecho, novamente o narrador se vale do recurso da repetição para transmitir ao leitor a imagem que lhe invade os pensamentos, ou seja, a de relógios quebrados, que não se ajustam ao tempo real, justamente para construir a imagem do absurdo, pois, em tempos bélicos, é como se o tempo chronos da rotina fosse afetado.

Assim, por meio da construção dessa imagem absurda, constituída por relógios cujos ponteiros não são capazes de registrar o tempo chronos sequencial, observamos que o mundo está em desordem, nem tempo nem espaço têm mais sentido. Além disso, é como se houvesse a personificação desses objetos que parecem adquirir formato de esqueleto humano, uma vez que o autor faz referência a um ossuário de relógios.
O autor enfatiza que essa situação desoladora acontece em uma determinada estação do ano, ou seja, o verão, período destinado à frutificação da maior parte das plantas. Geralmente, ele é utilizado como a metáfora de um período alegre e próspero. Porém, as imagens do abandono e do tempo descontrolado nos remetem a um cenário de desordem e de morte, o que parece se contrapor a esse período promissor. Por isso a afirmação de que o verão morre, pois, com tais imagens, parece haver a interrupção da vida.

Em seguida, deparamo-nos com os olhos do narrador, de dentro de um avião, os quais são capazes de alcançar e registrar o sofrimento causado pela invasão alemã no norte do território francês. Durante esse êxodo desordenado, ele traça para o leitor o panorama da devastação nas comunidades atingidas pela invasão inimiga, sobretudo a cidade de Arras. Após o abandono, as pessoas colocam-se em movimento, numa marcha desordenada: “Engarrafamento de estradas, incêndios, materiais dispersos, aldeias arrasadas, desordem… imensa desordem. […] Regressamos a uma espécie de barbárie agravada. Tudo se decompõe lá embaixo!” (p.161-162).

Assim sendo, nesse pequeno trecho descritivo, percebemos que o autor opta por fazer uma gradação, já que há uma distribuição progressiva de uma série de elementos até chegar ao clímax, ou seja, à situação desoladora de bagunça e abandono. Portanto, assim como o tempo está desorganizado, da mesma maneira a disposição das coisas no espaço também revela a falta de sentido. Dessa forma, do alto, o narrador transmite-nos a ideia de pequenez do ser humano que foge da perseguição inimiga, pois, como ele mesmo afirma, de seu avião parece enxergar os homens como “infusórios na lamela de um microscópio.” (p.157).

A construção dessa metáfora, que compara os homens a animais microscópicos, não parece ter a intenção de desprezar esses camponeses, mas mostrar de que maneira os inimigos enxergavam esses alvos: “O inimigo reconheceu uma evidência e agora a explora. Os homens ocupam pouco espaço na imensidão das terras.” (p. 153).

Nesse mesmo sentido, valendo-se de uma metáfora animal, o narrador retoma o pensamento de como o ser humano torna-se insignificante em tempos bélicos: “Lá no Norte tinham dado um grande pontapé no formigueiro e as formigas iam embora dali.” (p.163). Se as formigas são conhecidas como insetos sociais pela capacidade de organização em grupos, aqui, inversamente, a ênfase parece ser dada na conseqüência do golpe humano que esses pequenos insetos recebem, ou seja, a dispersão.

Além disso, o capitão Exupéry ainda diz que, nas mãos dos inimigos, as aldeias, antes um nó de relações, não passam de um “ninho de ratos” (p.153); e os trabalhadores aldeões transformam-se em “parasitas e vermes” (p.167). Sendo assim, o autor nos propõe algumas comparações para que possamos compreender a maneira desprezível como é vista essa população, comparada a “infusórios, formigas, vermes, parasitas e ratos”. São elementos que podem ser associados às características das imagens demoníacas, pois eles constituem o panorama da decomposição apontado por Frye.

É interessante perceber o papel que a água desempenha na composição desse ambiente, pois ela perde sua cristalinidade natural e se transforma em lama, enfatizando o cenário de terra abandonada e inabitável: “E a água, que era canalizada para beber ou para lavar as belas rendas domingueiras das aldeãs, transformou-se em charco diante da igreja.” (p.116). E a água em movimento que mantinha a vida nessa vila, não só saciando a sede da população, mas também proporcionando momentos de alegria, converte-se em água estagnada, símbolo de morte. Há, portanto, um contraste entre a alvura de um tecido tão nobre, usado tradicionalmente aos domingos para as aldeãs irem ao templo religioso, e a cor turva do lodaçal.

Ao longo de seu texto, o narrador retoma a imagem do charco, por meio de outras imagens: “patinhar na lama” (p.162), “digestão pela argila” (p.162), “rio de lodo” (p.163), “estradas negras de um interminável xarope que não acaba mais de correr.” (p.162), “esgoto comum” (p.169), “territórios lamacentos onde a terra e a água se confundem.” (p.172). Assim, sob a configuração de um cenário imundo e desolador como o que se forma, encontramos homens miseráveis, comparados a animais desprezíveis que caminham na tentativa de fugir de uma situação desesperadora.
Agora, sob nova perspectiva, já não mais de dentro do avião, ele entra em contato com a caravana e caminha ao lado de alguns camponeses. A partir dessa experiência, ele narra outros episódios, como o homem que mendigava leite para seu filho de seis meses porque o bebê não havia comido nada desde o dia anterior, ou o caso de um homem desesperado que procurava um médico para sua esposa, pois ela estava grávida. É como se ele estivesse com uma câmera nas mãos e se aproximasse para registrar os detalhes desses acontecimentos, que não podem ser visualizados do alto.

Diante de tais situações, deparamo-nos com o olhar sensível de um narrador que capta os sofrimentos daqueles que outrora, do alto, via como seres desprezíveis. Daí podermos afirmar as duas perspectivas que ele tem sobre uma mesma situação, pois o narrador é capaz de nos transmitir um mesmo acontecimento pelos olhos de alguém que apenas sobrevoa o local e pelos olhos de um combatente que caminha ao lado das pessoas.
Além disso, nessa obra constatamos outra imagem que configura o universo demoníaco: a da “direção perdida” (FRYE, 1973, p.151). Assim, movidas pelo desespero, as pessoas abandonam suas casas, sem saber ao certo para onde vão, como o narrador descreve: “um êxodo prodigiosamente inútil, a caminho do nada.” (p.170).

Por fim, a última característica do universo demoníaco apontada por Frye (1973) são as imagens ígneas, ou seja, o mundo do fogo como um mundo de demônios malignos, como os fogos-fátuos, ou como o exemplo da destruição de Sodoma, que foi incendiada. Por isso podemos associar tal característica, visto que o capitão Exupéry dedica várias páginas de Piloto de Guerra a descrever a cidade de Arras em chamas.
O crítico canadense associa a imagem do fogo a fogos-fátuos, uma espécie de inflamação espontânea do gás dos pântanos, resultante da decomposição de seres vivos: plantas e animais típicos do ambiente. Da mesma maneira, o narrador afirma que o fogo que consome a cidade francesa atingida pelos ataques é alimentado pela decomposição do que levou tanto tempo a ser construído pelos homens:

A chama de Arras brilha vermelho-escuro, como um ferro na bigorna, esta chama de Arras bem instalada em reservas subterrâneas, por onde o suor dos homens, a criatividade dos homens, a arte dos homens, as lembranças e o patrimônio dos homens alimentando sua ascensão nesta cabeleira, transformam-se em chamas que oscilam ao vento. (p.195)

E mais uma vez, o narrador emprega o recurso da repetição da palavra “homem”, justamente para destacar que a chama que consome Arras é mantida pela decomposição do trabalho realizado pelo ser humano. Ainda podemos enfatizar que o narrador opta por utilizar substantivos abstratos, uma vez que não descreve a destruição de bens materiais, mas a desintegração progressiva da herança cultural da comunidade.
Além disso, a descrição da cor vermelha-escuro é muito simbólica no texto, considerando que o narrador enxerga a terra como um inferno em chamas que se contrapõe ao céu azul de onde ele sobrevoa o local: “Arras é apenas uma tocha vermelha no fundo azul da noite.” (p.184).
Sendo assim, podemos perceber a existência de tais imagens demoníacas no livro estudado, de maneira a revelar a situação caótica do início da Segunda Guerra, o que cria um verdadeiro inferno no país. No entanto, em meio ao carmim de sangue e destruição, surge o azul celestial, de onde emanam as imagens apocalípticas.

Imagens apocalípticas: no território azul da infância

Se por um lado o narrador de Piloto de Guerra constrói tantas imagens demoníacas, podemos observar também que, para ele, o surgimento das imagens apocalípticas parece ser a única possibilidade de fuga do acontecimento exterior da guerra. Nesse texto, podemos perceber que o capitão Exupéry lança um olhar retrospectivo, uma vez que, em contraposição às imagens caóticas, busca as imagens do mundo ideal no território de sua infância, como ele mesmo afirma: “Eu remontava na minha memória até a infância para voltar a encontrar o sentimento de uma proteção soberana.” (p.186).

Nesse sentido, podemos visualizar algumas dessas imagens já no primeiro capítulo da obra, pois, o narrador, o capitão Exupéry, antes de lançar-se à missão bélica, busca refúgio nas lembranças de quando era estudante:

Devo estar sonhando. Estou no colégio. Tenho quinze anos. […] Um ramo de árvore oscila docemente ao sol. Eu olho por um longo tempo. Sou um aluno distraído… Sinto prazer em saborear este sol e este cheiro infantil a carteira, a giz, a quadro. Eu me refugio com alegria nesta infância tão bem protegida. . (p.113)

Segundo Frye, no que diz respeito ao mundo vegetal, figuras como o jardim, a fazenda, o bosque e o parque podem ser classificadas como imagens apocalípticas. Por isso, vale destacar nesse trecho a construção de um cenário, em que elementos da natureza, como o sol e a árvore, despertam no personagem a sensação do que é desejável para o ser humano, ou seja, a felicidade pueril.

O narrador, que inicialmente enxerga as circunstâncias sob o olhar de um menino, bruscamente, na página seguinte, muda de perspectiva e observa que alguns elementos escolares, como régua, esquadro e compasso são usados como instrumentos para triunfar sobre os inimigos.
E essa técnica de oscilação entre o olhar de um menino e o olhar de um adulto é recorrente em Piloto de Guerra, pois, em meio à descrição das imagens demoníacas, dos ataques dos caças inimigos, o narrador relembra fatos de infância. Por esta razão afirmarmos que seu texto é errático, entrecortado, que mescla fatos bélicos e recordações pueris.

No início do capítulo XIX, há a descrição de um voo de reconhecimento em que o avião pilotado pelo capitão Exupéry fica na mira do exército alemão. O narrador inicia o texto descrevendo essa situação arriscada, mas repentinamente volta-se para sua infância e passa a contar fatos de quando ainda era um infante. A principal lembrança invocada é a da governanta Paula, a quem ele dedica algumas páginas.

É interessante perceber como ele parece não se concentrar na fala de um dos seus companheiros, que o alerta sobre um possível ataque, porque está em uma longa digressão, como se dialogasse com sua ex-governanta:

Paula, estão atirando para cima! […] Mas, por baixo da minha nuvem, o mundo não é escuro, como eu acreditava pressenti-lo: é azul. Maravilhosamente azul. É a hora do crepúsculo e a planície está azul. Chove em alguns lugares. Azul de chuva… (p.182)

Sendo assim, mesmo em meio aos ataques dos alemães, ele só é capaz de visualizar sua governanta, contemplando o céu que sobrevoa, e por esse motivo repete tantas vezes a cor azul, talvez em contraposição ao vermelho dos disparos e das chamas da cidade incendiada. E ele insiste nessa cor, pois, na página seguinte, vai recorrer novamente ao azul: “É tão extraordinário! Esta cor é tão profunda. E estas árvores frutíferas, estas ameixeiras talvez que desfilam! Eu entrei nesta paisagem.” (p.183)

Nos trechos nos quais estabelece sua ex-governanta como interlocutora, o ritmo da narrativa parece ser alterado, já que, mesmo com a velocidade do avião e dos disparos, ele é capaz de captar a calmaria de um céu que está acima dos ataques, de um céu que parece ser retomado em suas lembranças de infância. E isso pode ser observado pelas frases curtas, pelos pontos de exclamação, pelas reticências, bem como pelo uso de palavras que remetem a um olhar mais contemplativo, tais como “maravilhosamente, extraordinário e profundo.”

Desse modo, observamos que o aviador se embevece ao contemplar a paisagem que surge em plena guerra, visto que parece enxergar com os mesmos olhos do colegial descrito no início do livro. E ainda sob essa mesma perspectiva, ele narra os tiroteios que lhe sobrevêm enquanto “dialoga” com sua governanta em suas digressões, pois descreve os ataques fazendo uso de uma linguagem infantil, como observamos no trecho a seguir: “Isto é uma nova brincadeira, Paula. Um passinho à direita, um passinho à esquerda e assim se despista o tiro.” (p.183).
Aqui observamos que o narrador relata os fatos como se estivesse brincando, o que pode ser constatado pela maneira como ele despista os tiros, porque parece estabelecer um movimento para lá e para cá, tal qual uma criança faz. E ainda no próximo capítulo (XX, p. 188), ele continuará a usar a mesma linguagem, uma vez que afirma entrar na dança de um grupo de malabaristas que envia dezenas de milhares de bolas de ouro, isto é, ele suaviza (e ao mesmo tempo ironiza) os ataques inimigos, como se estivesse participando de um joguinho infantil.

Também recorda Paula de uma brincadeira específica de sua infância, a qual ela não havia conhecido, quando ele e seus irmãos brincavam de “Chevalier Aklin” nos dias chuvosos, bem como da função que um cavaleiro assume nos contos de fada, isto é, ele enfrenta terríveis obstáculos até chegar a um castelo encantado, no seio de uma planície azul. Da mesma maneira, o narrador parece reviver a brincadeira tal qual o personagem dos contos infantis, já que ele afirma caminhar em direção ao seu castelo de fogo, enquanto sobrevoa Arras, em meio à imensidão de um céu azul.
Além disso, o narrador utiliza uma outra imagem apocalíptica: metáfora animal da ovelha, outra característica das imagens apocalípticas para caracterizar as caravanas que se colocam em movimento como ovelhas perdidas, sem pastor para lhes mostrar o caminho: “E esses carneiros partem no meio de uma formidável algazarra de material mecânico.” (p.166). Com isso, ele critica as ordens absurdas dadas por um Estado que se perde em seus próprios movimentos e que sacrifica a vida de pessoas inocentes, representadas aqui por animais dóceis, destinados ao sacrifício.

Nesse sentido, outra metáfora bíblica característica das imagens apocalípticas é utilizada pelo capitão Exupéry: a de que somos membros de um mesmo corpo, ou seja, fazemos parte de uma mesma comunidade. Apoiado no simbólico ato cristão de partir o pão, o capitão relata uma refeição em que seu caseiro partilha o pão com algumas pessoas que estão à mesa: “Eu sou deles, como eles são meus. Quando meu caseiro distribuiu o pão, não deu nada. Ele partiu e trocou. Foi o mesmo trigo que em nós circulou.” (p.192). Desse modo, ele afirma que o pão une as pessoas em uma verdadeira comunidade, o mesmo que se rememora nas celebrações cristãs, em que o pão eucarístico une a igreja, formada pelos cristãos, corpo místico de Cristo.

O narrador recorre a esse tema várias vezes durante o texto, para evidenciar a necessidade de se criar laços, de pertencer à comunidade dos homens. Talvez isso ocorra como uma tentativa de encontrar uma solução para os conflitos bélicos da época, os quais colocavam em risco a fraternidade humana.

Assim, as imagens apocalípticas surgem nessa obra por meio das metáforas bíblicas, das reflexões humanas e, sobretudo, das recordações infantis.

Conclusão: imagens entremeadas

Antoine de Saint-Exupéry fazia parte do Grupo de reconhecimento 2/33, encarregado de efetuar perigosas missões de reconhecimento, a fim de fotografar a movimentação do inimigo nos territórios ocupados. Esse escritor francês realmente desejava uma França livre e unida, mas, inconformado com o armistício em 1940, quando o general Pétain assume o governo colaboracionista de Vichy, ele decide exilar-se nos EUA.

Desde o início dessa tarefa, Saint-Exupéry já afirma que se trata de uma missão sacrificada, considerando que o exército francês era inferior ao exército alemão, não só em quantidade, mas também em equipamentos e munições, o que os tornava alvos fáceis nas mãos dos alemães. Além disso, algumas vezes confessa que as informações obtidas por seu grupo não seriam repassadas a ninguém: “Eu pergunto se é sensato sacrificar uma tripulação por informações de que ninguém precisa e que, se um de nós ainda viver para comunicá-las, jamais serão transmitidas a ninguém.” . (p.125).

O livro é escrito somente em 1942, nos EUA, dois anos após a missão da qual o piloto-poeta participara. Por esta razão, talvez essa obra seja uma tentativa de reconhecimento de um trabalho que não foi tão bem interpretado pelas autoridades da época. Assim, valendo-se das imagens demoníacas e apocalípticas, o narrador parece construir para o leitor talvez as fotografias ignoradas e pouco exploradas que seus companheiros tiravam enquanto ele pilotava o avião. Essas possíveis “fotografias” que ele parece “revelar” são mostradas a partir de duas perspectivas que se entrecruzam durante toda a obra.

Ou seja, elas aparecem ora pelo olhar de um adulto inconformado com as imagens de guerra e que descreve o inferno existencial em tempos bélicos, ora pelo olhar de um piloto-poeta que, nas alturas, é capaz de encontrar as imagens de um paraíso, ainda que esteja perdido nas reminiscências de infância.

Portanto, ao optarmos realizar essa análise literária, considerando os padrões apocalípticos ou demoníacos dessa obra, pretendemos atingir o que Frye (1973) aponta como seu objetivo ao desenvolver essa teoria, isto é, o de que tais padrões podem ser considerados como fatores relevantes para uma rigorosa análise crítica, o que eleva uma obra literária da categoria do “meramente histórico”.

Referências bibliográficas:
FRYE, Northrop. Anatomia da Crítica. São Paulo: Editora Cultrix, 1973.

GALEMBERT, Laurent de Bodin de. Le sacré et son expression chez Antoine de Saint Exupéry. Tese (doutorado). Université Paris IV – La Sorbonne, 2006.

SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. Écrits de Guerre: 1939-1944. Prefácio de Raymond Aron. France: Gallimard, 1982.

________________. Oeuvres Complètes I. France: Éditions Gallimard, 1994. (Coleção Bibliothèque de la Pléiade)

________________. Oeuvres Complètes II. France: Éditions Gallimard, 1999. (Coleção Bibliothèque de la Pléiade)

________________. Pilote de Guerre. In: SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. Oeuvres Complètes II. France: Éditions Gallimard, 1999. (Coleção Bibliothèque de la Pléiade)

WEBSTER, Paul. Saint-Exupéry: vida e morte do Pequeno Príncipe. Tradução de Cláudia Shilling. São Paulo: Marco Zero, 1994.

Por Patrícia Munhoz. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da UNESP- Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras de Assis, na área de Literatura e Vida Social. O tema de sua pesquisa é: “A influência da Segunda Guerra na produção literária de Saint-Exupéry”. Bolsista FAPESP.



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Publicado em 06/10/2017

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