Sob o céu e as estrelas do Campeche

Meu vínculo com a praia do Campeche – ainda que eu tenha passado por períodos de certo distanciamento ao morar em outras cidades, como Joinville e Porto Alegre –, é o da memória afetiva. 

Das noites de céu estrelado e luar, nas décadas de 1970 e 1980, lembro-me de como ficava iluminada a estrada de terra e o terreno com pasto em frente à casa dos meus padrinhos. De outras noites mais escuras, ficaram marcados os insetos: o barulho levemente estridente dos apaga-velas em torno da lâmpada da pequena varanda ou do lustre da sala de refeições, ou o brilho dos vagalumes. Também houve noites de espera, como as das brincadeiras dos mascarados, nas quais crianças, ou mesmo mocinhos, colocando na cabeça fronhas ou lençóis brancos com grandes furos na região dos olhos e da boca, pregavam sustos; e as do boi-de-mamão.

Lembro-me de certas manhãs em que íamos à praia e tínhamos o desprazer de arrastar, grudado nas solas dos chinelos e dos pés, o piche deixado pelas embarcações de pesca e que só conseguíamos remover com óleo de cozinha. Certos fins de tarde eram muito divertidos. Poderia ser o de uma caminhada pela praia, passando o Riozinho até o Pontal para ver o arrastão feito pelos pescadores. De fato, até os anos 1930, o “Campeche” como é conhecido hoje não o era ainda: apenas a ilha em frente à praia tinha essa designação. Os demais trechos, conforme demonstra mapa da obra do folclorista Franklin Cascaes, se denominavam Mato de Dentro, Pontal e Areias¹, aliás localidades ainda existentes. Nós crianças participávamos “ajudando” os pescadores a puxar a corda presa à rede até a areia. E assim podíamos até ganhar um peixe para as refeições em família.

Esses momentos despertaram o meu interesse pelas histórias do Campeche, em especial as do antigo campo de aviação que se encontra na atual avenida Pequeno Príncipe. Esse fascínio remonta à memória dos nossos ascendentes.

Desde criança eu ouvi falar sobre o casal Jeanne e Joseph Jacquinot. “Monsieur” Jacquinot foi o último administrador do campo de aviação do Campeche sob o comando da Air France… Minha tia e madrinha Maria Lúcia Barreto dos Santos era afilhada de batismo do casal. Meus tios Edite e Nilson Boeing os visitaram no interior da França, na cidade de Moulins, em 1974².

Mário Moraes com a esposa Abigail Barreto Moraes, Maria Marta Barreto e Jeanne Jacquinot, na região da atual Av. Beira-Mar em Florianópolis, anos 1950. Acervo: família Barreto.

A amizade deles não era fruto do acaso:  meu avô Odilon Muniz Barreto foi radiotelegrafista da companhia Aéropostale, no Campeche, nos anos 1930. Ele trabalhou, portanto, com o “Monsieur Jacquinot” (Joseph Jacquinot), engenheiro mecânico “chef d’aéroplace” em Florianópolis. E gosto de pensar que o trabalho do meu avô na casa de rádio no aeródromo Adolpho Konder se assemelhava ao do atual controlador de voo:  o de orientar o piloto em sua aterrissagem ou decolagem.

Entre cartas e mensagens por telégrafo que encontramos numa mala do vô Odilon, há uma de papel com o timbre “Via Aéropostale” que foi endereçada à minha avó, de 31 de julho de 1934, no Rio de Janeiro.

Foi possivelmente no Pontal – região onde se encontram o terreno do antigo campo de aviação e o casarão de pilotos da Aéropostale, que meu avô conheceu minha avó. Ele, Odilon Muniz Barreto, natural de Aracaju, e ela, Maria Marta Rocha, natural do Campeche.

Conta minha mãe (Abigail), que minha avó, Maria Marta Rocha, foi criada por uma tia (minha tia-bisavó, que minha mãe de fato chamava de avó) porque seus pais eram falecidos. E elas moravam nas proximidades do antigo aeródromo (o campo de aviação) – o qual tinha o nome do Governador à época, Adolpho Konder –, num sítio que possuía um engenho de cana para fabricar açúcar; plantações de café, mandioca e feijão; colmeias e um laranjal. Além de minha avó Marta, minha tia-bisavó criou seus três irmãos: Cândido, Florêncio³ e João.

Sabe-se que às quintas-feiras o campo de aviação/aeródromo ficava fechado e não recebia voos. Assim, o hangar da companhia era usado para bailes que integravam funcionários e a comunidade local. Pode até parecer um detalhe apimentado, mas num desses bailes minha avó Marta, que era já noiva de outro, teria conhecido meu vô Odilon. Certamente seus olhares se cruzaram… Ela desfez o primeiro noivado.

A vó Marta, como nós os netos a chamávamos, nascera em 1911, e meu avô Odilon era 17 anos mais velho do que ela. Eles se casaram e tiveram três filhas: Abigail (minha mãe), Maria Lúcia e Edite, nascidas em 1933, 1937 e 1939, respectivamente.

Odilon Muniz Barreto nos anos 1930. Acervo: família Barreto.

O vô Odilon provavelmente trabalhou até o fim do primeiro semestre de 1935 na Air France. Ele teria deixado o posto em função do seu trabalho como representante classista da categoria dos radiotelegrafistas comerciais. Porém há cartas e mensagens dele para minha avó escritas em papéis timbrados da Air France até 31 de outubro de 1937.

Em novembro daquele ano ele contava à minha avó, por carta (cujo papel era timbrado da Companhia Nacional de Navegação Costeira), que havia embarcado no navio Itaquera no porto de Imbituba (Santa Catarina) para o Rio de Janeiro… Embora tivesse residência em Florianópolis, ele possuía também endereço no Rio de Janeiro. Além disso, por se tratar de um trabalho itinerante, abrangendo vários portos brasileiros, Odilon Muniz Barreto mantinha estada em vários locais.  Por um ano (1939-1940) ele foi responsável pelo Farol de Santa Marta, em Laguna.

Do meu avô guardo a imagem da foto pendurada em uma das paredes da casa da vó Marta, à rua Alves de Brito (no centro de Florianópolis). Era um homem elegante e charmoso, de terno, portando um chapéu de feltro. Pelos relatos de meus pais e tios, ficou para mim a imagem mítica de um herói de guerra.

Nos meses de julho e agosto de 1942, entre as costas da Bahia e de Sergipe, o submarino alemão U-570, comandado pelo capitão de corveta Harro Schach, torpedeou seis embarcações brasileiras. Entre elas estavam os navios Baependy, Araraquara e Aníbal Benévolo, da Marinha Mercante. Meu avô era tripulante do Araraquara, torpedeado em 15 de agosto, em Sergipe, cujo naufrágio causou a morte de 131 pessoas⁴. O corpo do vô Odilon jamais foi encontrado. A repercussão da tragédia forçou a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, ainda em 1942, para fornecer apoio aos Aliados (EUA, França, Reino Unido e União Soviética) no combate contra o Eixo (Alemanha, Itália e Japão).

Em decorrência desse triste fato, a jovem Maria Marta Rocha Barreto, minha avó, ficava viúva aos 31 anos, com três meninas para criar. Foi então que Monsieur Jacquinot tratou de alguns detalhes práticos e legais, como a busca por informações que esclarecessem o ocorrido, bem como os direitos de pensão para a minha avó. Madame Jacquinot (como a chamavam) foi bastante presente na vida das meninas Abigail, Maria Lúcia e Edite e exerceu importante papel na educação delas, repassando ensinamentos e costumes; ensinou-as a tricotar e a escutar as transmissões da Rádio BBC de Londres. Durante a Guerra, Madame Jacquinot foi morar com minha vó Marta e as meninas Abigail, Maria Lúcia e Edite na casa da rua das Araucárias, na Vila Operária, no bairro Saco dos Limões. Jacquinot fora convocado à luta, juntando-se aos Aliados.

Os laços de amizade que uniram minha avó, mãe e tias ao casal Jacquinot se perpetuaram, restando na lembrança de todos o sentimento de carinho por gerações de nossa família estendida: Barreto Moraes, Barreto dos Santos e Barreto Boeing.

A história dos meus avós é uma das muitas contadas sobre o campo de aviação do Campeche, isto é, o Aeródromo Adolpho Konder, primeiro aeroporto de Santa Catarina. Mas a origem disso é anterior, em 1925, precisamente no dia 14 de janeiro, quando os pilotos franceses da então Latécoère vieram ao Brasil para reconhecer o céu e a terra e avaliar a possibilidade de prolongar-se o correio aéreo para a América do Sul.

Dando continuidade ao reconhecimento da linha Rio de Janeiro-Buenos Aires, três aviões Breguet XIV, sob o comando dos pilotos franceses Étienne Lafay, Joseph Roig, Paul Vachet e Victor Hamm, acompanhados pelos mecânicos Louis-Marcel Gauthier, Paul Estival e Gaston Chevalier,  partiram do Campo dos Afonsos (RJ) com destino ao sul do Brasil. Ao chegar a Florianópolis, foram recebidos por autoridades catarinenses: o Tenente Contídio Régis, representando o Governador Pereira e Oliveira, e o desembargador José Boiteux, no Campo da Ressacada⁵.

Dois anos depois, Paul Vachet e sua esposa Lydie percorreram a costa do Brasil a fim de encontrar os locais adequados para a instalação de aeródromos. Em abril de 1927 a companhia Latécoère mudava de mãos e passava a ser controlada pelo grupo Bouilloux-Lafont. Em dezembro do mesmo ano a empresa recebeu a nova denominação societária: Compagnie Générale Aéropostale (CGA)⁶, conhecida genericamente como “Aéropostale”.

Em junho de 1927 começaram os trabalhos de engenharia nos terrenos das cidades de Pelotas e Porto Alegre. Foi nesse mês que os terrenos na localidade de Pontal (Campeche, Florianópolis) foram adquiridos pelo valor irrisório de 10 contos de réis – cerca de 2 mil francos à época. Mas antes, para que fosse possível a transação, o piloto Vachet e sua esposa se tornaram padrinhos de casamento dos pescadores e suas companheiras. Esses casais viviam juntos, porém não eram casados legalmente. Os casamentos permitiram regularizar o estado civil daqueles proprietários das terras, e as escrituras públicas puderam ser passadas a Vachet. Os “compadres” locais, não sabendo pronunciar o nome do piloto corretamente, passaram chamá-lo de “Vacê” ou “Valset”.

Entre setembro e outubro, Paul Vachet percorreu a costa brasileira para a inspeção dos canteiros de obras. Nesse período ocorreu o primeiro pouso de um avião da companhia Aéropostale no Gramal (no Campeche, onde hoje se situa a “rua do Gramal”), conforme relatou dona Francisca Paulina Inácio, em entrevista que me concedeu em 1995⁷. Dona “Chica” (como era conhecida), tinha à época 15 anos e testemunhou a aterrissagem.

Ainda em 1927, quando começou a operar o campo de aviação na localidade do Pontal, havia apenas duas pistas, uma de cabeceiras 15 e 33 e outra de 18 e 36. Esta numeração era atribuída de acordo com os graus em referência ao norte magnético. No caso, 36 corresponde a 360 graus. 

Foram construídos também a estação de rádio, as torres de radiofarol, o hangar e o prédio dos alojamentos, o que, em francês, se designa também por “bâtiment” (edifício). Tratava-se de uma espécie de casarão subdividido em administração, cozinha ou cantina, esta denominada de “popote” (rancho), e dormitório, onde raramente dormiam os pilotos. Mas naquele local, que é um imóvel remanescente e hoje recebe o nome de “casarão Aéropostale”, ficavam morando as famílias de franceses com atividades permanentes no aeródromo.

Em mensagem à Assembleia Legislativa de 29 de julho de 1928, o então Presidente do Estado de Santa Catarina, Adolpho Konder, reiterava a relevância do empreendimento da Aéropostale para o desenvolvimento do País:

Affirmação cabal do desenvolvimento que vae tendo a aviação mundial, o Aeroporto  Adolpho Konder, construido a orla da praia do Campeche, neste município, e pertencente à Compagnie Général Aéropostale é mais um apreciavel passo que aquella importante empresa nacional acaba de marcar, no sentido de auxiliar e desenvolver, cada vez mais, o serviço aereo no Brasil”⁸.

Sem dúvida, o progresso se anunciava. Mas para mim a praia do Campeche, em Florianópolis, sempre foi um lugar mágico. Era onde meus irmãos e eu íamos passar, em janeiro, as nossas férias de verão, e lá nos juntávamos aos nossos primos. A casa branca, localizada à rua da Capela, com portas e janelas de veneziana em madeira crua que pertencia aos nossos tios Maria Lúcia e tio Hélio, não era grande, mas o coração deles era imenso. Tudo era lindo no Campeche. Estar lá significava poder desfrutar de um pouquinho de cada coisa: a vida no campo, a praia e o verde dos morros da região onde, num aeródromo, outrora esteve a origem da história de nossa avó materna.

¹ CASCAES, Franklin. O Fantástico na Ilha de Santa Catarina. Florianópolis, UFSC 202. p.271.
² Nos anos 1970, meu tio Nilson foi à Europa com a esposa, minha tia Edite, para fazer um curso na Holanda. Eles aproveitaram para fazer uma viagem de trem de Paris até Moulins (cidade próxima a Vichy) e visitar os Jacquinot. Ao chegarem à estação, minha tia de pronto os reconheceu. Ela conta que foi uma emoção muito grande naquele frio novembro de 1974. Minha tia lembra que eles foram muito bem recebidos pelos Jacquinot, que tinham uma empregada portuguesa, o que facilitou em muito a comunicação entre eles. Ao final da visita, diz minha tia que já estava “arranhando” bem o idioma francês.
³ Tio Florêncio, por sinal, era sogro de Getúlio Inácio, filho do conhecido pescador do Campeche Rafael Manuel Inácio, que teria convivido com os pilotos e mantido amizade com Antoine de Saint-Exupéry. A esse respeito Getúlio Inácio escreveu o livro “Deca e Zeperri” (2000).
⁴ Da tragédia contabilizaram-se 607 mortos de cinco navios; dentre esses, três transportavam o maior número de pessoas a bordo. O Baependi era o que mais levava pessoas a bordo:  323 (73 tripulantes e 250 passageiros), e teve, com o afundamento, 270 mortes; já o Araquara, com 146 pessoas a bordo (73 tripulantes e 73 passageiros), teve 131 mortes; e o Aníbal Benévolo, com 154 pessoas a bordo (71 tripulantes e 83 passageiros),  150 mortes. Os dados foram retirados do livro U-570: o submarino que afundou o Brasil na Segunda Guerra Mundial”, do jornalista Marcelo Monteiro (São Paulo: Schoba, 2012, págs. 77, 117, 134 e 228).
⁵ Em matéria do jornal O Tempo (Florianópolis, 22 de janeiro de 1925), intitulada “Azes da França”, comentava-se a viagem aérea e os futuros benefícios do progresso que dela decorreriam: “Julgando que a aviação só poderá usufruir lucros no transporte a grandes distancias, onde não seja possível a concurrencia do trem e do navio, a companhia Latécoère inaugurou o serviço de transporte aéreo de Natal ao Rio da Prata. Da sua maravilhosa efficacia tivemos a prova no dia 14, quando os jornaes sahidos do Rio às 5 horas da manhã, aqui eram lidos às 3 da tarde. Outras maravilhosas empresas ainda assistiremos. Ao retornarem de sua viagem inaugural, aterram hoje no Campo da Ressacada os bravos pilotos franceses, tão bravos e tão intrepidos que ainda sentimos todo o heroismo de seus feitos na Grande Guerra. E com a lembrança deste heroismo, personificado em Roig, em Laffay e em Vachet que de longe vêm trazendo a honra da França (…)”.
Danel, Raymond. L’Aéropostale – 1927-1933.  Toulouse: Bibliothèque Historique Privat, 1989, págs. 11, 12 -14, 19 e 91-93.
⁷ Entrevistei, em 23 de dezembro de 1995, Francisca Paulina Inácio (1912-2010), esposa do pescador Manoel Rafael Inácio (1910-1993), conhecido como seu Deca, que se recordava sobretudo do piloto Antoine de Saint-Exupéry, por quem tinha amizade. O filho de seu Deca e dona Chica, o militar da Aeronáutica, também pescador e músico, Getúlio Inácio (1952-2016), dedicou-se a preservar as memórias de seu pai e sua relação com Saint-Exupéry. Por sinal, Getúlio casou-se com “Bia”, na realidade Maria, filha de meu tio-avô Florêncio. Portanto, a esposa de Getúlio é prima-irmã da minha mãe e minha prima de segundo grau.
Arquivo Público do Estado de Santa Catarina. A mensagem era um relato das atividades de governo descrevendo fatos políticos relevantes e apresentando valores contábeis.

Por: Márcia Regina Barreto Moraes
Jornalista e pesquisadora, participou da tradução da obra Saint-Exupéry ou O Ensinamento do Deserto (2014), de Jean Huguet.


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Publicado em 29/08/2019

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