Roland Garros, depois de demonstrações aéreas memoráveis no Rio de Janeiro, de incursões pessoais sobre o céu de Petrópolis e as fotos pioneiras que fez daquela região serrana, rumou para a surgente metrópole da capital de São Paulo. Em suas memórias, o piloto francês confessa francamente o receio de enfrentar o lugar: “Foi a primeira vez que me vi responsável por uma empresa (a Queen Company Aviation), numa cidade estrangeira onde eu não conhecia absolutamente ninguém” (Mémoires, p. 278).
São Paulo, apesar das abastadas famílias em torno do cultivo do café, não era comparável à então capital federal, Rio de Janeiro, já tão conhecida dos europeus. Tratava-se de uma metrópole embrionária, mas isso ainda não era totalmente identificado. Assim, Garros comenta sobre a precariedade para o exercício de sua atividade:
“Nossos primeiros passos foram superar a inércia e a indiferença das pessoas de quem dependíamos. Tivemos de nos contentar com o terreno de um hipódromo mal servido pelos meios de comunicação. Fiz dois voos de publicidade sobre a cidade, uma sessão consagrada aos representantes da imprensa, enfim, minha estreia em público”. (Mémoires, p.278)
Não obstante, foi rápida a adesão dos paulistanos face ao deslumbramento dos voos do Blériot que ele pilotava, chamando a atenção inclusive das famílias Prado, Prates e, principalmente, os Chaves, cujo oitavo filho, Edu, era também um pioneiro da aviação. Logo foi proposto a Garros o uso do terreno de polo clube da moda, o Antártica (hoje Parque Antártica). Se Garros não teve de São Paulo a mesma imagem idílica do Rio de Janeiro, pode-se atestar que, ainda assim, levou da cidade boas lembranças:
São Paulo é uma cidade muito agradável. Estávamos confortavelmente instalados na Rôtisserie, o melhor hotel – mais um estabelecimento francês, dirigido pelo M. Daniel. Fiz numerosos amigos entre a juventude esportista. A maioria possuía grandes plantações de café – as fazendas. Propuseram-me visitar algumas; me arrependo hoje de ter perdido oportunidades tão interessantes. Resta-me o remorso de ter estragado minhas duas viagens à América por preguiça e indiferença culposa por tudo o que não era aviação”. (Mémoires, p.279)
A lembrança mais viva para Garros, no entanto, foi relativa a que pôde levar, definitivamente, do ás brasileiro Edu Chaves. O altruísmo desse jovem piloto foi fundamental para que Garros cumprisse uma prova proposta pelo automóvel-clube, um prêmio ao piloto que fizesse São Paulo-Santos, ida e volta. Seria a primeira vez que alguém realizaria tal trajeto. Ávido de vencer tal desafio, Roland Garros se viu, todavia, impedido por falta de peças para seu avião, as quais haviam sido encomendadas em Buenos Aires, mas não chegaram. Como o próprio Garros revela numa carta de 28 de março de 1912 a Moratne, ele foi “salvo” por Edu:
(precisei esperar) a liberação do material do amigo Chaves (…). Eu lhe devo essa e convido você a saborear en passant o gesto elegante e raro desse camarada – agora um amigo – de me emprestar essas peças das quais ele podia precisar na manhã seguinte, para permitir que eu ganhasse um prêmio que ele mesmo poderia ganhar sem dificuldades” (em: Roland Garros, pionnier de l’aviation, Jean Pierre Léfèvre-Garros, Ananké-Lefrancq, 2001, p. 260).
Essa amizade franco-brasileira entre os jovens pilotos, Garros e Chaves, é bastante representativa das cooperações entre a França e o Brasil nos primórdios da aviação dos dois países. Se a França, no início do século XX, foi o país indubitavelmente pioneiro na aeronáutica, é impossível não se mencionar que lá voou, antes de todos, o brasileiro Santos Dumont. Garros, que por sinal era um “demoisellite” (título dos que voavam com o Demoiselle, modelo do “pai da aviação”), sentiria a verdadeira camaradagem de Edu Chaves que, apesar dos lapsos históricos injustos que não o reverenciam devidamente, foi um ás brasileiro e, assim como Santos Dumont, deslumbrou os franceses por sua ousadia.
À Altura de Santos Dumont
No exterior e no Brasil, Edu Chaves esteve à altura de Santos Dumont. Porque foi Edu Chaves (1887-1975) o segundo piloto brasileiro a tirar o brevê na escola de Étampes (julho de 1911), na França. E foi ele o primeiro piloto do mundo a realizar um voo noturno e o fez na França. E, uma vez pioneiro num país estrangeiro, Edu Chaves não deixou por menos em sua terra natal: foi o primeiro piloto a realizar um voo no Brasil, em Santos, em 1912; o primeiro a realizar São Paulo-Rio de Janeiro e entre o Rio de Janeiro e Buenos Aires – feito em que precedeu os pilotos da Latécoère.
Na Europa, onde ele estava depois de concluir os estudos na Escola Politécnica (Brasil) e a Universidade de Liège, na Bélgica, Edu Chaves entusiasmou-se pela aviação, conforme elucida o Brigadeiro do Ar Refim Bohrer: “(…) (Edu Chaves) passou a alimentar o sonho de ser aviador e, nesse particular, a França era, sem dúvida, o lugar ideal para que ele se concretizasse”. (BOHRER, de Athayde, R.C., Opúsculo, INCAER, p.10). Matriculado na escola Blériot de Étampes, em três semanas ele já voou solo, coisa completamente inusual, pois os aprendizes costumavam levar alguns meses para isso. Uma vez brevetado (n. 559) e reconhecido pela Fondation Aéronautique Internationale, ele não cessou de dar provas de sua ousadia, sempre guardando a modéstia que lhe era característica.
No mesmo ano de seu brevê, em novembro, Edu Chaves aceitou fazer um percurso de 1.800 km, com 27 escalas, entre Paris e Marselha. Tratava-se do Prix des Escales, oferecido pelo Aéroclub d’Ouest do qual ele foi vencedor graças ao fato de pilotar à noite, tendo por único sinalizador a iluminação da ferrovia que ligava essas duas cidades francesas. E quando havia deslumbrado os franceses, Edu Chaves voltou ao Brasil, em 1912, trazendo um avião Blériot desmontado, já com o intuito de fundar em São Paulo uma escola de aviação – de fato, a primeira que veio a existir no país, na qual seriam usados aviões franceses.
O piloto paulista poderia, com efeito, ter participado do concurso entre Santos e São Paulo. Mas seu avião não tinha chegado; num gesto de notável generosidade, Edu Chaves cedeu as peças sobressalentes que possuía para que o colega Roland Garros voasse. A atitude de Edu só fez engrandecer as demonstrações aéreas, já que ele soube, servindo-se da coincidência de datas, tornar a ocasião inesquecível.
No dia 7 de março, Edu Chaves encontrava-se no Porto de Santos para, enfim, receber seu avião que acabara de chegar… Não teve dúvidas e, com o aparelho, sobrevoou a praia de José Menino. Um espetáculo inesperado que exultou a multidão. No dia seguinte, Garros decolou, sob grande efusão de amigos, compatriotas e outros, do Antártica, em São Paulo. O tempo estava fechado e o piloto só conseguiu prosseguir na segunda decolagem. Seu sobrinho e biógrafo, Jean-Pierre Léfèvre Garros, descreve a aventura:
Às sete horas e dez, Roland decola e perfila a avenida Paulista ainda adormecida até o bairro do Ipiranga; sobe a 500 m para apreciar o horizonte: ainda fechado. Ele volta a pousar. A partir das 8 horas, as nuvens começam a se dissipar. À 8:50 H, ele decola novamente para Santos, desta vez, definitivamente (…)”
“Durante esse tempo, Santos estava em efervescência. A chegada de Garros havia sido anunciada para as 8 horas: bondes lotados trouxeram uma multidão imensa que se apoderou das praias de José Menino, Boqueirão e Ponta da Praia. Os mais abastados vieram de automóvel ou de carros de tração animal. Para acalmar-lhes a impaciência, Chaves decolou às 9 horas da praia do Gonzaga, onde havia erguido seu hangar, e seu Blériot evoluiu longamente no céu, com leveza. De repente, surgiu o avião de Garros. O entusiasmo do público chegou ao auge quando os dois aviões se cruzaram no ar, desenhando no céu imensos arabescos e os dois pilotos se saudaram com as mãos.” (Lefévre-Garros. pp. 260-261)
Os pilotos retornaram juntos a São Paulo. Edu Chaves chegou um pouco depois; ele foi primeiro sobrevoar sua cidade, passando pelo Largo do Arouche, a avenida Paulista, a Freguesia do Ó, a Lapa, a Avenida São João. O piloto fez várias espirais sobre o teatro Municipal, depois aterrissou n o gramado do Antártica. Era o primeiro brasileiro a pilotar sobre o Brasil e estava em companhia de um piloto reconhecido entre os grandes nomes da França e do mundo.
Era, de fato, a primeira vez que um piloto brasileiro sobrevoava o país, pois até aquela data, o feito fora reservado a estrangeiros, como foi o caso de Edmond Plauchut. Ele, que tentara sobrevoar a baía de Guanabara, sobrevoara Santos, de acordo com o relato, inclusive do historiador Sergio Willians, do Instituto Histórico e Geográfico de Santos e de São Paulo, que mantém o blog “Memórias de Santos”. Ele revela que Plauchut fizera “um dos mais belos voos, entre os primeiros do Brasil, sobre a tranquila e bela Baía de Santos, numa manhã ensolarada de 13/01 de 1911”. (Willians, https://memoriasantista.com.br/?p=3600). Plauchut era francês.
Heróis de guerra
Breve passou o tempo glorioso da aviação para esses pioneiros e a Primeira Guerra Mundial tornou o avião também uma arma. No conflito, Roland Garros, depois de brilhante defesa de seu país, foi abatido por alemães. Justo ele, que havia sido também pioneiro na área militar pela invenção para os aviões de combate, conforme narra o escritor Philippe Forest em prefácio às memórias do aviador:
Uma vez tornado piloto de guerra, ele colocou toda a sua engenhosidade a elaborar um sistema que permitia que uma metralhadora fixada sobre a fuselagem atirasse através do campo de rotação da hélice: evolução técnica com a qual nasce a arte moderna do combate aéreo e que o aviador experimenta por sua própria conta no Morane-Saulnier, em cujos comandos ele terá asseguradas seguidamente três vitórias”. (Mémoires, p.16)
Em 18 de abril de 1918, Garros é obrigado a pousar atrás das linhas inimigas. Mesmo tendo incendiado o próprio avião, ele não conseguiu destruir seu material, que os alemães terão a possibilidade de estudar. Feito prisioneiro por longo tempo, ele vagou de um campo de concentração a outro, até que escapou e retomou o combate. Sua vida termina em 5 de outubro de 1918, quando é abatido pelo inimigo, um dia antes de completar 30 anos de idade…
Garros fizera parte dos primeiros pilotos do mundo, aqueles que decidiram correr riscos pela aviação, como se tornassem a ficção do célebre escritor francês Júlio Verne (que eles liam com avidez) realidade. A maioria deles vinha de uma classe de esportistas. O próprio Garros, que passara os exames para a faculdade de Filosofia, cursara Direito e entrara na Escola de Altos Estudos, fora antes campeão interescolar de ciclismo (1906). Como escreve seu sobrinho e biógrafo, aquela “nascente raça de aviadores (era) coroada do prestígio de cavaleiros”. (Léfèvre-Garros, p.29). Somente no final 1910, eles chegariam ao número de 200 aviadores.
O amigo brasileiro do herói Roland Garros também lutou na guerra. Em 1916, Edu Chaves obteve o brevê de piloto militar na França (número 2828) e inscreveu-se na Legião Estrangeira, permanecendo em combate por 16 meses. Recebeu a honraria da Ordem do Mérito Aeronáutica em 1955. Justa homenagem de um país que o brasileiro amou verdadeiramente e que defendeu, deixando para trás suas atividades aeronáuticas ligadas à instrução.
Em 1913, Edu Chaves, com outro piloto brevetado na França, Cícero Marques, deveria dirigir a aviação da recém-fundada Força Pública de São Paulo. Mas partiu para ajudar no conflito e só retornou ao Brasil ao final da guerra, porém sem retomar a escola. Não obstante, os aparelhos usados nesta eram os seus.
Incansável, Edu Chaves, em 1919, arrisca fazer o raid Rio de Janeiro-Buenos Aires, percurso tentado em vão por vários outros, que interromperam a viagem por dificuldades. Na primeira tentativa, Edu Chaves não logrou êxito, pois seu Caudron não suportou o combustível extra. A Força Pública Paulista lhe emprestou, enfim, um Curtis Oriole. No Natal de 1920, ele decolou, mas estava à sua frente o concorrente argentino Hernae, no sentido contrário. Já quase em São Paulo, Hernae bateu num cupim e, embora não tenha se ferido, teve de abortar a prova em Sorocaba porque seu avião ficou avariado. Graças ao que se chamou jocosamente de “cupim patriótico” nos jornais, Edu Chaves concluiu com êxito o trajeto, um total de 2.200km, que ele fez com a média de 140 km/h, e 470 km por dia.
Era o percurso de um precursor: Edu Chaves fez a rota que somente a equipe enviada por Latécoère, da França, em 1925, iria percorrer com o intuito de abrir uma linha de correio aéreo definitiva entre as duas cidades sul-americanas. O ás brasileiro estaria novamente presente em São Paulo para receber os colegas franceses. Por eles, Edu Chaves encaminhou a doação de 10.000 francos à então chamada, a “Caisse Aéronautique” que fora fundada na França para apoiar as famílias de pilotos mortos em acidentes. Sua generosidade foi mencionada, inclusive, na revista Aérophile de 1º. de outubro de 1925, página 320.
Uma generosidade constante, que se repetiu quando, nas proximidades de Guarulhos, o aviador vendeu em condições excepcionais suas terras, em 1924, para que casas populares fossem construídas. O terreno só foi irrigado e 300 casas erguidas em 1953, as quais foram adquiridas, em sua maioria, por militares da Força Pública de São Paulo. Mas a arquitetura do que se chamaria então o “Parque Edu Chaves” é uma réplica do formato da Champs Elysées em torno da “étoile” do Arco do Triunfo, em Paris, onde, outrora, o camarada do piloto, Roland Garros, mantinha sua loja de automóveis. Hoje, praticamente 70.000 habitantes do bairro paulistano dialogam, sem saber, com o apreço que um piloto brasileiro, um ás infelizmente pouco rememorado, demonstrava pela França.