O industrial francês Pierre Georges Latécoère (1883-1943) é tido pelos historiadores como um genial visionário, o que inegavelmente foi. Ele chegou a construir o que se pode definir como “império aéreo” à época, pois além de ter criado uma linha imensa de transporte de correio “par avion”, foi também um dos maiores fabricantes de aviões da História.Como demonstra sua biografia, entretanto, ele não planejou de imediato entrar na indústria ou no transporte aeronáuticos. Pudera! A aviação era coisa de esportistas, acrobatas e aventureiros desde o voo de Santos Dumont em Paris em 1906. Isso mudará com a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), ocasião em que se descobre o avião como arma para bombardeio e como instrumento para reconhecimento. Em meio a tantas dilacerações traumáticas que causou, a guerra transformará os negócios de Latécoère e, mais amplamente, o curso dos acontecimentos e da indústria no mundo.
Aos 22 anos, Pierre Georges Latécoère perdera o pai e se vira chefe de família, como era costume à época em se tratando dos filhos mais velhos (ele tinha uma irmã e um irmão mais novos). Tendo herdado muitas empresas, inclusive na pequena cidade de Bagnères-de-Bigorne de onde era originário, foi-lhe preciso coordenar os negócios e, movido por ambições maiores, dividiu parte da tarefa com sua mãe. Entre os muitos produtos que chegou a fabricar (cabines telefônicas, interruptores, marcenaria, lustres, etc.), um mereceu destaque na área militar, a ”cuisine roulante Latécoère”. Espécie de carro equipado para o aquecimento da boia militar. Foram produzidos 2.500 exemplares que modificaram a vida nos campos de batalha franceses.
Mas Latécoère tinha em mente, desde antes da guerra, um propósito: construir vagões e material de rolamento, já que os trens singravam o continente europeu em todas as direções. Mas foi obrigado a colocar seus planos em espera, apesar de um contrato poderoso com o Estado francês, que lhe encomendara vagões e plataformas. Ele passou a produzir material bélico, obuses etc., além de, por demanda do Exército, fabricar aviões que estavam dando bons resultados de bombardeio e observação: os aparelhos Breguet XIV e Salmson A-2.
Assim, Latécoère transformou suas oficinas situadas no bairro afastado de Montaudran (onde ele comprara terras em 1917), em Toulouse, em usinas de construção aeronáutica. Ergueu um grande galpão de montagem, com 10 metros de altura, mandou cavar um poço e preparou os depósitos de combustíveis. Na frente do grande hall de montagem, estava uma pista gramada para testes dos aparelhos. E ali foi produzida a estonteante quantia de 6 exemplares ao dia do modelo Salmson A2! No total, foram 600 aviões dos mil encomendados pelos militares franceses em 1917. E a guerra terminou.
Investindo na produção de aviões, o jovem industrial formado engenheiro pela École Centrale (Paris), pensava cooperar para que a vitória de seu país não tardasse, e que esta lhe permitisse retomar a fabricação de vagões. No entanto, sem suspeitar, ele “sairia dos trilhos”…Não tardou para que Pierre George percebesse que os aviões remanescentes da guerra poderiam ter outra utilidade e que já era hora de superar os trens. Por que não os usar para transportar o correio? Já que a França tinha várias colônias na África naquele tempo (Marrocos, Senegal, Argélia), a ideia da redução de tempo e aceleração dos negócios parecia pertinente. O que não era pertinente eram as condições daqueles aviões que, se auxiliaram na guerra, nada tinham de tecnologia para atravessar as montanhas da Espanha e, depois do mar, atingir a África e cruzar o deserto do Saara. Não bastasse, Latécoère, à maneira de um “conquistador”, já vislumbrava, desde então, transpor o Atlântico e chegar à América latina.
Antes mesmo que o armistício fosse assinado (novembro de 1918), em 7 de setembro, Latécoère registrou seu ousado projeto. Diante dos interlocutores, sobretudo as autoridades governamentais a quem ele pretendia pedir subvenções, julgavam-no um tresloucado. Todavia, sua obstinação o transformaria num dos nomes mais relevantes da história da indústria francesa e mesmo mundial. Na época, porém, ele mesmo constatou: “Refiz todos os cálculos. Nossa empresa é irrealizável. Só me resta uma coisa a fazer: realizá-la”. E foi assim que Latécoère tratou, então, de realizar o irrealizável.