Sobre cavalos e aviões

Uma vida tem que estar em movimento ou permanece estagnada. (…) Nenhum amanhecer deve ser semelhante a qualquer ontem. ”

Beryl Markham (1902-1986)
Beryl Markham (1902-1986)

A afirmação em tradução livre, é de West with the Night, livro de memórias de outra mulher de personalidade marcante: Beryl Markham, inglesa criada no Quênia, treinadora de cavalos de corrida e também uma das pioneiras da aviação.

Embora tenha nascido na Inglaterra em 1902, já em 1906, Beryl Markham mudou-se para uma fazenda comprada por seu pai no Quênia, do qual faria seu país de adoção. Ela chegou a conhecer melhor a língua local, o swahili, do que o inglês, até porque aquele universo onde sua a educação era “sem muros!” (como ela mesma qualificou) horrorizou sua mãe. Sem se adaptar, esta retornou à Inglaterra com o filho mais velho. Beryl, ao contrário, ficará com o pai, a quem tem verdadeira devoção, e nunca perdoará totalmente esse abandono de sua mãe.

A rotina africana da pequena inglesa incluía caçar com os guerreiros quenianos e viver toda a liberdade da savana. Sua primeira profissão: treinar cavalos de corrida.

Loira, de olhos azuis, com quase 1,80 m de altura, Beryl era incrivelmente feminina: amava perfumes, cuidados com a beleza, roupas que valorizavam seu tipo físico. Foi, inclusive, apontada por servir-se de seu charme para seduzir os homens a fim melhor permanecer em “territórios” ditos, naquele início do século XX, “masculinos”, como o hipismo e a aviação.

Um encontro fortuito com o aviador Tom Campbell Black levou Beryl Markahm a se interessar por aviação. Com ele, a jovem fazendeira aprende a pilotar. Um ano e meio mais tarde, ela seria a primeira a obter um brevê de pilota comercial na África; Beryl só tinha 19 anos e vivia um relacionamento amoroso com Campbell.

De uma dedicação impressionante aos aviões, Beryl aprendeu muito sobre mecânica, a conhecer os instrumentos e a ler mapas. Sobre estes, aliás, ele escreveu: “Um mapa diz a você: leia-me cuidadosamente, siga-me de perto, não duvide de mim… eu sou a Terra na palma da sua mão”.

Meticulosa, ela mantinha registros detalhados de todos os seus voos – viagens a fazendas distantes, rotas de correio, resgate de pilotos acidentados, serviço informal de ambulância, observação para caçadores de manadas de elefantes. Mas em geral, ela viajava sem rádio chegando uma vez a ir sozinha de Nairóbi à sua terra natal, distância de quase 7.000 km.

Em 1936, Beryl Markham se torna a primeira mulher a cruzar o Atlântico sem escalas, no sentido leste-oeste, partindo de Abingdon, na Inglaterra. Amelia Earhart já fizera a travessia a partir da América do Norte, caminho considerado menos traiçoeiro. Beryl enfrentou terríveis dificuldades durante o voo – ventos contrários, problemas mecânicos e de combustível – até perder o rumo e cair num pântano da Nova Escócia, na costa canadense, quando seu destino era Nova York.

O saldo da aventura, mesmo assim, foi positivo: se o avião praticamente se destroçara, Beryl sofreu apenas um pequeno ferimento na cabeça. Ao contrário de tantas outras pioneiras da aviação, ela teve vida longa, até porque perdeu a vontade de voar em consequência da morte daquele que lhe ensinara a pilotar, Tom Black, subtraído por um acidente aéreo em Liverpool pouco depois que ela ganhara as manchetes. Beryl manterá a seu lado uma fotografia dele até sua morte, aos 83 anos de idade.

Livre por natureza, Beryl Markham não teve sucesso em nenhum de seus três casamentos e foi uma mãe ausente de seu único filho (do segundo casamento). Sem gosto para voar, ela se instala nos EUA, casando-se com Raul Schmmacher. Naquele país, Beryl encontraria Antoine de Saint-Exupéry, piloto e escritor que ela admirava. Ele a incentiva a escrever. Em 1942, a aviadora lançará West with the Night, elogiado pelo escritor Hemingway, o que não impediu o livro de cair no ostracismo, assim como a autora, que, mais tarde, de volta ao Quênia, passaria por sérios problemas financeiros. Mas na década de 1980, a republicação de seu livro lhe resgata, desta vez, a glória e a fama esquecidas e lhe permite ganhar o suficiente para viver com dignidade até descansar em solo africano aos 83 anos de idade. De personalidade complexa, Beryl Markham foi e é tema de muitos trabalhos cinematográficos e literários.

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