“Um avião sempre é um pouco o pássaro do mistério”
(Maryse Bastié)
Vencer o desafio de atravessar o Atlântico sul pelo ar foi o que tornou internacionalmente célebre a aviadora francesa Maryse Bastié. Contemporânea dos pilotos da Aéropostale, a altura de suas conquistas é comparável àquela dos feitos de seus colegas. Aliás, sua ousada travessia foi preparada com o apoio do lendário piloto Jean Mermoz, com quem ela fez uma ida e volta entre a África e a América do Sul antes de realizar seu voo solo. Com isto, a aviadora também ecoou sua predecessora, Adrienne Bolland, numa época em que mulheres interessadas em aviação eram raras. “Eu passei o Natal em Natal” – escreveria Maryse em suas memórias, quando da viagem efetuada com Mermoz e sua tripulação, que ocorrera no fim de dezembro de 1935.
Maryse Bastié foi batizada em 1898 Marie Louise Bombec, no seio de uma família de operários. Quando menina, respondeu ao pai sobre qual profissão queria exercer quando crescesse: “Quero ser marinheiro”. Malgrado as explicações que seu amado pai lhe dera sobre a impossibilidade de mulheres exercerem essa profissão à época, fica patente o desejo pelos desafios naquela garotinha de Limoges.
“Eu me dou conta de que não fui uma menininha como as outras menininhas. Eu não brincava… Só gostava dos brinquedos pelos segredos que eles me traziam e o mistério que possuíam. Mistério mecânico que eu logo descobria… pois, mal me davam a boneca que falava ou o bichinho que funcionava com uma corda, e eles já estavam esviscerados por minhas mãos profanadoras”
Eis o que nos conta a aviadora em seu magnífico livro de memórias Les ailes ouvertes (“As asas abertas”, Fasquelle, 1937).
Com a perda do pai, a pequena família de Maryse Bastié (sua mãe e um irmão) tiveram uma vida de maiores sacrifícios. Na adolescência, ela é enviada como aprendiz a uma fábrica de sapatos, mas tem dificuldades sem se habituar à rotina operária. No entanto, Maryse descobre a leitura e passa a comprar e devorar toda sorte de livros, e revela: “Eu havia enfim encontrado a porta mágica que permitia à cativa que eu era evadir-se da vida cotidiana em loucos arroubos.” (Les ailes ouvertes).
Mas a eclosão da Primeira Guerra Mundial trouxe perdas significativas também para essa moça com alma inquieta: seu único irmão morreu em batalha. Com a fábrica de calçados fechadas, Maryse Bastié se viu “mobilizada” nos ateliês de costura para confeccionar trajes de guerra, fardas, uniformes de enfermeiras etc.
De um casamento precoce (aos 17 anos), ela teve um filho e este também perderia cedo, quando ele tinha apenas 7 anos, vítima de tifo. Em 1920, a aviadora já se divorciara.
O sobrenome e a carreira na aviação de Maryse se misturam: foi pelo segundo casamento, com o tenente Louis Bastié, de quem ela fora madrinha de guerra, que ela entraria verdadeiramente em contato com a aviação. Em 1915, católicos conservadores fizeram surgir a figura das madrinhas de guerra, moças que se correspondiam com um soldado de sua adoção para prestar-lhe apoio moral, emocional e psicológico. Em alguns casos, essas correspondências, com o fim do conflito, levaram a casamentos. Foi o que se deu com Maryse e Louis Bastié. Ele havia servido na aviação, por que era apaixonado, e ela o descreve em suas memórias:
“Eu havia conhecido o piloto Louis Bastié durante uma de suas licenças. (…) Ele imediatamente representou para mim toda a poesia e toda a bravura daquela época excepcional (…). Uma bela figura enérgica, de olhos claros que pareciam sempre buscar no céu alguma rota maior, mais arejada, um sorriso de vencedor, assim ele me aparecera… Suponho que as moças românticas assim imaginem o Cavaleiro de suas lendas…”
Como se lê, para Maryse foram duas paixões simultâneas: o piloto e a aviação. Depois de seu casamento, em 1922, eles tiveram antes uma loja de calçados que a ambos frustrou porque eles tinham espírito aventureiro. Mas o “cavaleiro” retornou um dia de Bordeaux onde lhe lançaram a oportunidade para ser monitor numa escola de aviação em Mérignac… E os dois deram adeus à loja e aos sapatos.
Mas não foi Louis que ensinou Maryse a pilotar e sim Guy Bart, que tinha aviões e o propósito de fundar uma escola de aviação. Já em 1925, Bastié obteve o brevê. Infelizmente, porém, em 1926, Louis Bastié morre num acidente de avião e a deixa viúva.
Mulher forte, porém, Bastié deu continuidade à carreira de aviadora. Ela viajou para Paris, onde chegou a passar por grandes privações. Ia a Orly observar os aviões que, por falta de condições materiais, ela já não podia pilotar. Mas em 1927, um industrial lhe daria a chance de que precisava: ele desejava montar uma escola de pilotagem e propôs a Maryse que fosse instrutora. Ela voltou, com toda a alegria, a voar. Ávida de possuir um avião, Maryse Bastié foi procurar o construtor Caudron e pediu que lhe emprestasse um aparelho. A resposta foi evasiva: que lhe emprestaria, mas que o motor era Salsom. Se este concordasse com o empréstimo do motor, estaria bem. A jovem aviadora foi à empresa Salsom e obteve o empréstimo do motor, portanto, do avião Caudribn C-109. Pagar o aparelho era outra história e ela então promoveu batismos do ar e propaganda aérea. Mas foi participando de um raide com outro pioneiro francês que ela obteve a soma necessária: eles ganharam em segundo lugar e dividiram o prêmio. Maryse se tornou finalmente a proprietária de seu avião.
Na década de 1930, Bastié estabelecera diversos recordes internacionais de aviação feminina que vão do tempo de voo à distância; quanto à travessia do Atlântico sul, ela a realizou em 30 de dezembro de 1936, menos de um mês após o desaparecimento de Mermoz na mesma rota, o que tornou a proeza da aviadora ainda mais notável. Ela decolara de Dacar e pousou, após 11 horas e cinquenta minutos de voo sem escalas, num avião desprovido de rádio, em Natal, no Brasil. Seu pouso ocorreu após 12 horas e cinco minutos dadas as dificuldades para pouso em Parnamirim. Não é por acaso que a cidade brasileira tem uma rua batizada com seu nome. No retorno, Maryse Bastié foi consagrada Oficial da Legião de Honra. Em 1937, ela publicou sua história no livro ‘Ailes ouvertes: carnet d’une aviatrice’ (Asas abertas: anotações de uma aviadora). Os jornais locais noticiaram:
“Em 30 de dezembro de 1936 – A AVIADORA MARYSE BASTIÉ – A aviadora francesa sem abater-se à tragédia de Mermoz e seus companheiros, concluiu o “raid” Paris-Dakar-Natal, em apenas 12 horas e 7 minutos, tripulando, solitária, um “Caudron-Simon”, do Ministério do Ar da França, sob prefixo “Fenxo”, sem rádio, com um só motor de 220 C.V. – A partida de Mlle. Bastié de Dakar verificou-se ás 4,23 (hora brasileira), tendo chegado ao campo de Parnamirim, ás 16,30. Era a Segunda vez que Natal hospedava a destemida aviadora francesa, detentora de vários “recordes” femininos entre os quais avultam o de permanência no ar, com a duração de 30 horas, e o assinalado nesta travessia atlântica”.
A intrépida aviadora havia batizado seu avião como “Jean Mermoz”, sobre quem escreveu:
“Em Natal nós tínhamos vencido e eu podia acoplar à nossa vitória o nome do piloto que me apoiara em meus projetos e me honrara com sua confiança…” (Les ailes ouvertes, p.152).
Depois de dias de descanso em terras potiguares, Maryse Bastié voou para o Rio de Janeiro com seu avião. Segundo registrou, a viagem foi um “encantamento”. A aviadora serviu-se, naquele momento, de toda a estrutura que havia sido implantada no Brasil pela Aéropostale e então retomada pela Air France. Os pilotos que agora trabalhavam sob a nova insígnia francesa eram, ela bem sabia, os heróis da grande saga, a do correio aéreo Latécoère-Aéropostale. Eles a apoiaram, incondicionalmente, sem sombra do que se poderia pensar ser machismo, tão abundante à época.
Entre as descrições idílicas que a aviadora fez do Rio de Janeiro, algumas linhas se destacam:
“Quando a gente sobrevoa o Rio, fica de tal maneira maravilhado, que já nem sabe para onde olhar, de tantos deslumbres que se oferecem às nossas vistas. O mar luminoso? A areia das conchas peroladas que cintilam? O porto, onde balançam inumeráveis navios de guerra e paquetes maciços? As ilhas cujas imagens duplicam sobre a vaga vibrante? Nos jardins de flores gigantescas ou as florestas pesadas, profundas, selvagens que fazem de Tijucas um diadema de esmeraldas?
A gente quer fixar todas essas imagens na nossa realidade; a gente quer, no coração gravá-las com toda a sua graça.” (Les ailes ouvertes, p.155)
Como se pudesse reassegurar os vínculos franco-brasileiros diante de seu próprio encantamento com o país tropical, Maryse Bastié ainda registra, fazendo alusão até mesmo á primeira tentativa francesa de colonizar o Rio de Janeiro, em 1555, com a vinda de Villegaignon, que mandou, depois de alguns meses, que francesas fossem trazidas àquela “Nova Antártica”:
“Fico contente que o Cristo (no Corcovado) seja obra de um francês – Lewandoviski – como gosto de me lembrar que as primeiras brasileiras foram francesas enviadas para colonizar, para trazer nosso sangue nessa terra abençoada”. (idem, p.154)
Em seu retorno, Maryse Bastié é condecorada com a Legião de Honra.
De novembro de 1937 a março de 1938, a aviadora retornaria à América do Sul para uma série de conferências.
E em 1940, com a ofensiva alemã na Segunda Guerra Mundial. Maryse Bastié, que tinha com seu primeiro instrutor uma escola de pilotos em Orly, oferecerá seus serviços à Cruz Vermelha. Quando num trem para a Alemanha, ela fraturou o cotovelo direito e ficou inválida para pilotar. Ainda assim, recolherá informações sobre o país invasor. Com a liberação de Paris, a aviadora se engaja com as auxiliares da Força Aérea e obtém a patente de tenente até ser, enfim, desmobilizada em 1946. E novamente ela é coroada, em 1947, com a patente de Comendadora da Legião de Honra por seus títulos de guerra e feitos na resistência”.
Por ironia, mesmo já não pilotando, Maryse Bastié viria a morrer num acidente aéreo. Em Lyon, durante um meeting aéreo em 1952, ela estava a bordo de um avião protótipo Nord 2501, também chamado de Noratlas, como passageira, com outras seis pessoas. O avião caiu e matou a todos.
A mulher que foi Maryse Bastié merece destaque. Sem fortuna, construiu sua carreira de aviadora sob os maiores sacrifícios pessoais. As mazelas da vida não a demoveram. Nas guerras, mostrou-se uma militar irrepreensível. A França lhe deve, sem dúvida, gratidão. E o mundo todo pode admirá-la, pois ela também lutou pela emancipação feminina, junto a suas companheiras de aviação, para que as mulheres pudessem votar.
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