Mulheres no Comando

Já vai bem longe o tempo em que a imagem de mulheres que voam era associada à figura assustadora de bruxas montadas numa vassoura. Nas primeiras décadas do século XX, quando a aviação começava literalmente a alçar voo, a ousadia de algumas delas de cruzar os céus no comando de uma aeronave deixou muita gente de cabelo em pé.

Afinal, num mundo – e principalmente numa época –, de domínio dos homens sobre o chamado sexo frágil, a palavra piloto quase só admitia ser precedida de artigos definido ou indefinido masculino e, dadas as condições das aeronaves, esses artigos vinham quase sempre no singular. Quase – porque ao desafiarem as convenções, muitas mulheres escreveram páginas significativas da história da aviação.

Universo feminino plural de um caminho aberto nas espessas nuvens do preconceito e da discriminação para que hoje o céu realmente não tenha limites e seja de todos, dando mais amplo sentido à palavra “humanidade”. O mundo, graças à aviação, permitiu que essa “terra dos homens” – título de um dos livros do piloto-escritor Saint-Exupéry – também seja vislumbrada pelas mulheres.

Hoje, se o princípio da aviação moderna tem como base modelos de aeronaves mais pesadas do que o ar, o traço comum entre o que tem peso e segue rumo ao céu e tudo o que se eleva enquanto flutua, – talvez seja o mesmo que une em espírito as pioneiras do começo do século XX e as atuais comandantes em suas máquinas voadoras. É a junção do aço da engenharia das asas com a firmeza de mulheres que, malgrado sua singular tenacidade, parecem mais leves do que o ar…

O artigo a seguir traça um singelo tributo à ousadia daquelas que se tornaram pioneiras do sonho de voar. Pequena homenagem a algumas delas em nome da grandeza de todas.

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Brasileiras do ar

Do continente africano ao país de dimensões continentais, onde Santos Dumont (1873-1932) é considerado o Pai da Aviação, quatro brasileiras merecem destaque: Anésia Pinheiro Machado (1904-1999) e Tereza de Marzo, que tiraram o brevê no mesmo momento, Ada Rogato e Joana D’Alessandro (Joaninha).

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Anésia (1904-1999) passou pelo seu batismo do ar aos 16 anos e dali em diante frequentaria os ares por bastante tempo. Em 1921, a paulista do interior entraria para a Escola de Aviação Curtiss de São Paulo e já no ano seguinte, fazia história como a primeira a realizar um voo solo no país. Pouco depois, ela recebe o brevê internacional da Federação Aeronáutica Internacional (FAI) pelo Aeroclube do Brasil e se torna também pioneira na condução de passageiros.

Numa época em que a mulher se limitava quase sempre aos afazeres domésticos, Anésia foi, sem escalas, de uma conquista a outra, abrindo caminho para a participação feminina na aviação. Pioneira em voos acrobáticos, realizaria tanto o primeiro voo interestadual, viajando de São Paulo ao Rio de Janeiro em quatro dias – hoje a travessia dura 40 minutos – como um transcontinental de Nova York ao Rio pela costa do Pacífico, numa jornada de 17.000 km. Com um monomotor ainda atravessaria os Andes no sentido inverso ao da francesa Adrienne Bolland, indo de Santiago no Chile a Mendonza, na Argentina.

A fama de Anésia correu o mundo, sendo ela homenageada em diversos países. Além de se tornar instrutora nos EUA, usou do seu prestígio para que a International Astronomical Union imortalizasse o nome de Santos Dumont, rebatizando uma cratera da Lua, localizada a 60 km de onde teriam pousado os astronautas da histórica missão Apollo 15.

Anésia também recebeu da FAI o título de Decana Mundial da Aviação e das mãos do próprio Santos Dumont, uma medalha de ouro que sempre levaria como um amuleto. A aviadora viveu até os 95 anos e por desejo próprio, suas cinzas estão no Museu Santos Dumont em Cabangu, Minas Gerais, terra onde nasceu o piloto.

Colega de Anésia na Escola de Aviação de São Paulo, Thereza de Marzo (1903- 1976) teria recebido o brevê de piloto um dia antes dela. Apaixonada desde menina pelos aviões, ela precisou vencer a resistência do pai italiano, machista convicto de que lugar de mulher jamais seria a cabine de uma aeronave. Mas com o apoio da mãe – mesmo sem ter ajuda financeira da família – Thereza venceria esse primeiro obstáculo para ganhar os ares e em 1922 tornar-se oficialmente a primeira aviadora brasileira.

Um dos seus instrutores e principal incentivador foi Fritz Roesler, piloto alemão, veterano da Primeira Guerra, com quem Thereza se casaria em 1926 – e, incrível, foi como marido ciumento que ele mesmo a obrigou a abandonar a carreira.

Antes de ter as asas cortadas, Thereza cumpriria quase 330 horas de voo, destacando-se no raide entre São Paulo e Santos por ocasião das comemorações do centenário da independência do Brasil em 1922.

Depois, Thereza trabalharia com o marido – que também era engenheiro – no desenvolvimento de aviões e na criação da Escola de Pilotagem e do Clube de Planadores no Campo de Marte em São Paulo. Ela viveu até os 73 anos, sendo homenageada antes de morrer com a Ordem do Mérito Aeronáutico, a mais alta distinção de honra da Força Aérea Brasileira.

Outra paulistana, filha de imigrantes italianos, também faria história na aviação do país. Ada Rogato (1910-1986) foi pioneira na obtenção do brevê de piloto de planador e de paraquedista e em 1935 se torna a terceira brasileira a ter brevê para operar aeronaves convencionais.

Durante a Segunda Guerra Mundial, com a entrada do Brasil no conflito, Ada fez, de forma voluntária, 213 voos de patrulhamento no litoral do Estado de São Paulo. No pós-guerra, ela foi convidada pelas autoridades para ajudar no combate à praga da broca-do-café, fazendo polvilhamento aéreo das plantações do então principal produto de exportação brasileiro, o que fez dela pioneira também como piloto agrícola do país. Já no decorrer da década de 1950, Ada percorreu 25.000 km de norte a sul do Brasil, em 163 horas de voo num Cessna 140-A, cruzando até a selva amazônica com o auxílio apenas de uma bússola.

Ada Rogato ganharia projeção internacional ao atravessar as Américas, em mais de sete meses de viagem, chegando até o estado norte-americano do Alasca, no pequeno monomotor com o nome “Brasil” pintado na fuselagem.

O desafio incluiu a superação da sempre traiçoeira Cordilheira dos Andes por seus ventos e grandes altitudes em baixas temperaturas, principalmente a bordo de um avião de pequeno porte. Mas Ada, além de cruzar a cadeia de montanhas onze vezes, ainda se tornou a primeira pilota a chegar a Ushuaia, na Argentina, a cidade mais austral do planeta.

O voo transcontinental de Ada Rogato praticamente coincidiu com o de Anésia Pinheiro Machado. Perante o mundo, as brasileiras honravam o legado de Santos Dumont.

Um pouco mais tarde nasceu Joana Martins Castilho d’Alessandro (1924-1991), a Joaninha, também em São Paulo, capital. Diferentemente de suas antecessoras, a moça foi incentivada por seus pais a fazer o que gostava: voar. E veio a ser a mais jovem pilota de acrobacia do mundo, merecendo destaque até no Guiness Book. Pode-se dizer que Joaninha era popular e sua precocidade lhe valeu receber o brevê das mãos do próprio presidente Getúlio Vargas. Apesar de ter nascido na capital, Joaninha passou a maior parte de sua vida em Taubaté e de lá se sentia natural. Na cidade, até refrigerante foi estampado com sua foto. Ela faleceu em 1991.

Assista o vídeo:

Por Delmar Gularte e Mônica Cristina Corrêa

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Publicado em 11/03/2019